quinta-feira, 7 de março de 2013

CAPÍTULO IV - FILHOS DA NOITE: O CAMPO


Ouviram outra explosão. Mais uma granada que havia explodido a poucos metros do pelotão. Haviam coberto quilômetros sem se dar ao luxo do descanso, mas agora estavam próximos demais do território inimigo e precisavam rever a estratégia para continuar prosseguindo sem que tivessem mais perdas, e então pararam atrás de uma barricada durante alguns segundos para recuperar o fôlego.
Em meio a uma sinfonia de balas perdidas e achadas, explosões e gritos dos soldados, Caio olhava fixamente na direção de um de seus companheiros. Perscrutava a mente daquele sujeito, visualizando seus pensamentos materializados no centro da tempestade bélica. Pôde entender, sem muito esforço, que aquele sujeito não estava preparado para morrer, e por isso sentia correr em suas veias um medo desesperador, desvendado pela percepção súbita que tivera acerca da fragilidade da vida. Há minutos atrás, perderam o primeiro e terceiro sargento. Agora ele percebia que poderia ter sido ele o alvo da escolha nefasta de seu Deus, e mesmo não estando preparado, morreria satisfeito. Subiria para os eternos campos floridos e reluzentes e seria reconhecido por ter cumprido o papel de um anjo armado, designado a manter a desordem da sua espécie, e isso faria com que sua sanidade fosse mantida por mais algum tempo.
Caio teria ficado horas ali, desnudando as verdades e motivações daquele soldado se ele não tivesse sido capaz de perceber sua invasiva presença e rechaçá-lo com um olhar repleto de fúria que o fez questionar, por um instante, se ainda estavam lutando no mesmo lado. Um terceiro soldado que até então os observava com reprovação, gritou: - Pensamentos não ganham guerra e muito menos salvam alguém, tem que socar! Caio olhou imediatamente em sua direção e rapidamente o reconheceu. Tratava-se de André, um rapaz robusto e expressivo. Eles haviam se conhecido há cerca de dez anos, e desde então a amizade entre eles vinha se mostrando distinta. Compartilhavam pensamentos e motivações que certamente soariam ininteligíveis à maioria das pessoas. O modo de se relacionar entre eles não seguia padrão algum, pelo contrário, a melhor forma que encontraram de se fazer entender, ao passar dos anos, se dava através de diálogos ásperos e palavras ácidas o bastante para corroer as defesas mais bem edificadas. Tinham consciência de que um poderia conhecer mais do outro do que seria conveniente, e isso fazia com que sempre mantivessem o respeito um pelo outro. Já haviam passado por situações ainda mais delicadas do que a qual se encontravam, e por isso Caio se sentiu mais confiante em saírem vitoriosos naquela batalha.
Não havia entendido muito bem o significado das palavras de seu amigo, mas confiava nelas, e, mesmo que representassem perigo, estava disposto a assumir os riscos. Sabia que teria de liderar e dar esperança àqueles soldados, por mais que não guardasse muita para si mesmo. Naquela situação, poder contar com André seria de enorme ajuda. Olhou para ele, estudando sua expressão durante alguns segundos, e então perguntou em voz baixa, inaudível aos outros soldados: - Direita ou esquerda? - Pra onde estiver chovendo menos - respondeu o companheiro. Baseado na resposta que obtivera, planejou a ação do grupo. A ordem era que todos perdessem o medo, pois assim as balas não poderiam acertá-los. Deveriam andar em linha reta com a proteção da coragem até que pudessem mirar de forma precisa nos soldados inimigos, para finalmente derrotá-los.
Executavam o plano com perícia. Ouviam-se tiros de várias direções e podiam ver as balas passando a centímetros deles, mas nenhuma os acertava. Nem mesmo as explosões das granadas pareciam surtir algum efeito, como se tudo não passasse de efeitos especiais de cinema, incapazes de oferecer algum perigo ao pelotão. Quando chegaram à posição de ataque, desferiram rajadas fatais. Caio observava, desde o início da caminhada, um soldado inimigo cessar fogo logo após os primeiros disparos. Quando estavam perto de conquistar a vitória, ordenou que não matassem aquele soldado. Alguns dos soldados aliados o indagaram sobre sua decisão, outros esbravejaram, questionando inclusive a autoridade que havia assumido subitamente, já que os dois soldados de patentes superiores agora estavam mortos. Caio foi sucinto e transparente ao deixar claro que não fazia questão alguma de estar no comando, mas uma vez que lá se encontrava, teriam de concordar com seus motivos, pelo menos até estarem totalmente a salvos, e depois ele poderia explicar a todos o porquê de suas decisões.
Podia sentir, de alguma forma, as intenções de cada soldado daquele pelotão. Consultou André sobre tudo que havia acontecido desde que assumira o controle do grupo, mas ele apenas deu de ombros. O motivo de maior discordância entre Caio e os soldados era o fato de não fazer do inimigo capturado, um prisioneiro de guerra. Além de não amarrar ou prender o inimigo de alguma forma, Caio exigiu que não lhe confiscassem nem mesmo suas armas e acessórios. Ele parecia confiar e dar importância àquele sujeito, entretanto não fez nenhuma pergunta, nem mesmo se interessou em saber seu nome. Enquanto caminhavam, o inimigo capturado, que andava livremente entre eles, se aproximou de André e perguntou: - Quem é ele? Ou melhor, o que é ele? André examinou aquele rapaz, enquanto parecia procurar pela melhor resposta, e alguns instantes depois, respondeu: - Seja lá o que for, ele é o aspecto da justiça, e não existe justiça em assassinatos - O inimigo aceitou a resposta, e mesmo sem entendê-la muito bem, não quis continuar indagando, pois sentia-se intimidado. De qualquer forma, sentia-se grato por estar vivo.
Finalmente chegaram à base militar. Ela se instalava no meio da primeira casa que Caio havia morado desde que sua família se mudou para a cidade grande. A casa estava muito limpa, como sua mãe costumava sempre deixar, e logo se entristeceu ao imaginar que os soldados, em minutos, iriam desfazer o trabalho de limpeza e organização que ela havia levado horas para fazer. Foi no quintal conferir se não havia espiões, e pôde avistar a piscina de plástico que ele e seus irmãos costumavam usar quando eram crianças. Teve vontade de se livrar da farda e entrar nela, mas seria muito infantil para um militar, especialmente agora que estava no comando e precisava dar exemplo aos seus subordinados. Parou durante um momento para admirar aquele lugar. Era bom estar de volta, depois de tantos anos longe dali, ainda sentia que aquele lugar pertencia a ele, como se fosse um importante elemento daquilo que havia se tornado.
Contemplava aquele lugar com imensa tranquilidade quando sentiu a mira a laser da arma apontando para ele, lentamente subindo em suas costas, até que parou, ligeiramente à esquerda. Caio sorriu desdenhoso e pensou “o idiota não sabe que meu coração fica em outro lugar... de qualquer forma, eu não tenho medo mesmo, isso não pode me ferir”. Após alguns segundos, virou-se para encarar o atirador, com o sorriso ainda em seu rosto. Todos os outros soldados acompanhavam a cena sem se exaltarem. O atirador era um dos soldados do pelotão, um dos únicos que até então não havia se pronunciado. Caio sabia que ele pressionaria o gatilho em poucos instantes, e apenas esperou pelo fato. Quando finalmente disparou e a bala saiu da arma, sem barulho algum, Caio acordou assustado. Suava muito e seu travesseiro se encontrava completamente molhado. Sua respiração estava ofegante e sentia uma pontada de dor no peito, na região do coração. Pulou da cama e foi tomar seu banho.

Revisão: Paulo Machado

CAPÍTULO III - MUNDANÇAS


Caio acordou antes mesmo do alvorecer. Não conseguia dormir muito quando não estava em sua casa e somente por isso despertara tão cedo. Sentia-se pouco motivado a levantar, e, por um instante, teve vontade de renunciar ao trabalho e a qualquer outro compromisso para se entregar exclusivamente ao nada. Ao despontar de cada dia, tal sensação era uma das coisas que mais fazia sentido para ele, pelo menos durante alguns minutos.
Antes de reunir a valentia necessária para levantar, observou sua namorada por alguns segundos. Encontrava-se ainda despida e ele gostaria de ficar olhando para ela por mais alguns minutos. Júlia era uma moça muito bonita e sedutora. Loira, de pele clara, era razoavelmente alta e chamava atenção pelas suas curvas. Não lhe faltava seios, que eram bem dispostos. Possuía cintura fina e quadril largo, perfil preferido pela maioria dos homens.  Em seus vinte anos de idade, reunia o equilíbrio quase perfeito entre ingenuidade, experiência e um toque de mistério que a tornava ainda mais atraente.
Ao preparar seu café da manhã, decidiu retribuir o agrado que ela fizera para ele na noite anterior. Comeu com pressa e levou a bandeja para o quarto de Júlia. Nela continha pão integral, queijo, suco e frutas da estação. Ao ser acordada, ficou contente com a pequena surpresa que havia sido preparada para ela e retribuiu com um sincero e demorado sorriso. Caio rapidamente tomou um banho e se apressou para sair, pois estava atrasado. Ao se despedir, foi alvejado pela sedução de Júlia, que insistia em ter mais alguns instantes de privacidade com ele. Ela usou todo o repertório de golpes baixos que possuía, e quando tudo indicava que ele iria ceder, se recompôs a tempo de sair às pressas, esbarrando em todos os móveis que encontrou até chegar a porta.
Dessa vez o trajeto lhe apresentaria algumas novidades, pois não era muito comum dormir na casa de Júlia e não conhecia bem aquela região da cidade, e assim a viagem seria menos enfadonha. Chegando ao trabalho, foi avisado que receberia durante a tarde, a visita de Ernesto, representante de uma organização que mantinha valorosos negócios com a empresa em que trabalhava. Sempre que possível, preferia resolver as pendências burocráticas com Caio, pois ele recorria a métodos - inclusive os inofensivamente ilícitos – de agilizar todo o processo. Ernesto sentia-se muito grato por isso.
Ainda no período da manhã, enquanto fazia seu serviço com a meia vontade habitual, mas sem deixar de cumprir o que lhe fora designado, recebeu grande quantidade de mensagens de Júlia. Por mais que se esforçasse para não se enfastiar e para ser o companheiro que ela desejava, não conseguiu conter sua irritação e parou de responder depois de certo tempo. Por mais que tentasse, não entendia a origem de tamanha necessidade que ela possuía de sentir-se próxima dele. Às vezes simplesmente faltava assunto e chegava a hora de cada um cuidar de seu quinhão, mas a inabilidade dela não apenas o espantava; o irritava, por mais paciente e tolerante que fosse. Entretanto, toda essa demanda de sua namorada se mostrava capciosa, pois diversas vezes encontrou-se mergulhado em pensamentos de grandeza, devido à altura em que ela o colocava, se achando o homem mais interessante do mundo. Não era tolo o bastante para deixar-se enganar por muito tempo. Sabia muito bem qual era o seu lugar e rapidamente voltava para ele.
O fim da tarde se aproximava quando foi surpreendido por Ernesto. Apressadamente terminava algumas tarefas e nem o notou entrar pela porta de sua sala, sem discrição alguma. Desde sua chegada, rompeu o silêncio que imperava e não poupou conversas fiadas, animando Caio que retribuía quase na mesma moeda, porém com um pouco mais de formalidade. Ele gostava daquele sujeito de meia idade, e até se inspirava nele. Ernesto era dono de uma importante função em seu trabalho e tratava isso com a maior leveza possível. Relacionava-se da mesma forma com qualquer pessoa, sem discriminações mesquinhas, mas o que mais o impressionava era sua forma inusitada e bem humorada de lidar com assuntos sérios. Mais uma vez, e não pela última, Caio se perguntou se Ernesto já havia superado a fase de se aborrecer com os desassossegos da vida, e sentiu-se envergonhado por ter se irritado tanto com Júlia.
Quando resolveu falar de trabalho, Ernesto foi o surpreendido da vez. Mal precisou dizer o que precisava e Caio já apresentara tudo pronto, demonstrando agilidade e precisão que o impressionou. Ele, que nos últimos meses vinha desenvolvendo certa afeição por Caio e por suas prestezas pôde confirmar sua suspeita sobre o potencial daquele garoto e, olhando para ele de soslaio, comentou:
- Você apresenta qualidades incomuns pro que faz, rapaz...
- Como assim?
- Tenho reparado em você, em como consegue contornar e até evitar os problemas, como está atento no que acontece ao seu redor, como consegue dar um jeitinho de resolver tudo mais rápido... Você não se considera desperdiçado aqui nessa sala, sufocado com esses papéis que falam muito, mas não dizem nada?
- É um bom emprego, sou bem recebido aqui e procuro fazer o que me pedem.
- E o que não te pedem também.
- Ah, sim, às vezes... Não é o trabalho mais motivador e desafiador, mas pra quem ainda não concluiu os estudos está de bom tamanho. Pelo menos por enquanto.
-Por enquanto, é? A empresa que trabalho irá em breve expandir, criar novas filiais. Eu serei o responsável por uma delas e não acredito que conseguirei fazer isso sozinho. Estou ficando velho e preciso de gente nova comigo. Alguém que consiga se virar, que não dependa de ordens diretas e que tenha condições de tomar decisões importantes, até mesmo na minha ausência. Está me entendendo, filho?
-Perfeitamente.
-Anote aqui o número do seu telefone, ele poderá tocar logo em breve. Esteja preparado para algumas mudanças, pode ser que elas aconteçam.
Caio assistia Ernesto deixar sua sala com passos desapressados enquanto seu coração vagarosamente desacelerava. Ele não esperava por uma surpresa dessas, e por mais que não se tratasse de uma oferta de trabalho oficial, foi o suficiente para renovar seus ânimos. Pululando excitação, tentou preparar-se para os estudos. Dessa vez não dormiria durante as aulas, pois estava animado demais para ser vencido pelo cansaço. Escreveu para Júlia contando a novidade. Havia realmente se animado muito. Ao deixar o prédio, despediu-se do porteiro com um largo sorriso. Teve a sensação de que sentiria falta dele se não mais pisasse ali quase todos os dias da semana. Naquele dia, nem o transporte público iria conter sua animação.

Revisão: Paulo Machado

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

CAPÍTULO II - PAISAGENS


Pouco antes de tocar o despertador, Caio já se encontrava acordado. Havia se antecipado ao alarme que anunciava o novo dia. Mais uma vez enfrentaria a rotina dos estudos e do trabalho, sua principal fonte de renda e responsável pelo luxo das contas pagas. Precisava, a cada dia, depender menos da ajuda financeira de seus pais. Com o seu salário, contribuía simbolicamente no orçamento da casa onde vivia com sua mãe e pagava seus estudos, embora não sobrasse muita coisa que lhe permitisse certas vaidades.   
Levantou, como em qualquer outro dia, de mau humor e com poucas palavras a oferecer. Vagarosamente preparou seu café da manhã na companhia de Lúcia, sua mãe. Habitualmente, ela acordava antes mesmo dele, desperta pela coerente preocupação de que seu filho pudesse se atrasar. Atualmente era este o momento que tinha a companhia de Caio por mais tempo e não hesitava em aproveitar cada segundo.
Desde que seu filho começou a trabalhar em período integral, Lúcia sentia-se solitária, invadida pela falta das molecagens que ele costumava fazer para entretê-la, como os momentos em que a importunara ao abrir os braços em sua frente, bloqueando o caminho de um cômodo da casa para o outro e fazendo com que ela ficasse minutos por ali, procurando uma forma de se livrar. Ou de quando tentava estabelecer um diálogo e só obtinha como resposta uma mesma palavra qualquer sem sentido algum, independente do que ela dizia. Ou ainda de quando ele inventava histórias absurdas e ela se deixava ludibriar, mesmo conhecendo o tipo. Ela ansiava pela conclusão de seus estudos, e, enquanto o observava em seu desjejum, comentou:
- Ano que vem você não precisará acordar tão cedo, vai poder dormir mais um pouquinho...
- Não sei se será assim, tão fácil.
- Você terá finalmente terminado os seus estudos, será mais fácil conseguir alguma coisa mais perto e que pague melhor.
- Talvez... Não consigo entender o que acontece. Todas essas oportunidades de emprego que aparecem, tenho certeza de que vou bem nas entrevistas, melhor que a maioria dos concorrentes, e ainda assim não sou o escolhido! Isso me deixa frustrado.
- Não precisa se irritar. Talvez seja melhor assim, pelo menos por enquanto. Deus vai ajudar para que tudo dê certo. Tenho certeza que o sucesso está por vir, você sabe do seu potencial. E sabe também que isso não é papo de mãe coruja.
- Tudo isso parece um jogo, como uma partida de xadrez. Que Ele ajude quem só enxerga o preto e o branco do seu tabuleiro. Aqui embaixo há muito mais o que se levar em conta e a vida não me deu tempo para tomar decisões em turnos. Eu só preciso estar mais atento e atender às expectativas, coisa que não venho conseguindo fazer.
- Às vezes você é muito orgulhoso, quer sempre se virar sozinho. Deveria se permitir receber mais ajuda, principalmente das pessoas que lhe querem bem.
- Mas eu permito, mãe. Até de pessoas que nem percebem que estão me ajudando de alguma forma. Só não faço questão que elas se deem conta disso, da mesma forma que não faço questão alguma de obter algum retorno quando ajudo alguém.
         Caio se aproximava dos vinte e cinco anos de idade e ainda não havia concluído o curso superior. Grande parte dos alunos conseguia terminar antes mesmo dos vinte e dois e por este motivo ele se sentia atrasado. Ao sair do ensino médio, fizera algumas escolhas incertas e acabou mudando de área duas vezes, mas agora estava convicto de sua escolha e aspirava ascender profissionalmente assim que recebesse seu diploma. Até chegar lá, convivia bem com o que tinha.
         Antes de sair, pegou tudo o que lhe seria necessário: celular, fone de ouvido, agenda, e sua bolsa com todos os livros, tanto os que usaria quanto os que não. Enquanto esperava pelo transporte coletivo, fechou-se para o mundo ao se equipar com o fone. Não demorou muito tempo e avistou o ônibus se aproximando. Enquanto esperava por ele, acompanhava mentalmente a letra das músicas e sorriu ao passar pelo trecho I’m on the highway to hell. Era como uma coincidência poética, pois detestava o seu trabalho e a função que cumpria. Todos os dias, enfrentava documentos e burocracia o suficiente para esgotá-lo ao final do expediente.
Tinha para si que estava no lugar e na função errada. Considerava-se muito criativo perspicaz para passar o dia sentado em um trono de papéis. De fato, era dono de um raciocínio muito ágil e possuía uma capacidade para resolver problemas fora do comum. Seria um desperdício continuar ali por muito tempo, mas sabia que era necessário deixar a sua empresa para mudar de função, pois ela era inflexível demais para ele.
Geralmente, só começava a funcionar bem quando já estava a caminho do trabalho. Sua mente divagava pela manhã e somente quando exercia algum esforço mental, observando as pessoas e a paisagem, passava a tomar as rédeas dos seus pensamentos. Sentado em um banco numa das últimas fileiras, olhava fixamente para fora da janela, entretanto quase não prestava atenção, pois o trajeto não lhe apresentava muitas novidades. Ficaria ali cerca de uma hora e tinha o mapa de todo o caminho formado na sua cabeça. Mesmo se fechasse os olhos poderia se orientar pelas curvas e freadas do automóvel e precisar razoavelmente o local onde se encontrava. Havia adquirido tal habilidade muito mais em função de sua dependência do transporte coletivo do que por um senso de direção aguçado.
Quadras foram superadas, músicas celebradas, e, quando se aproximava do seu destino, foi solicitado pelo bip do celular. Havia recebido uma mensagem de texto e a remetente era Júlia, sua namorada. Antes de ler, supôs que reclamações sobre a sua saída na noite anterior estavam por vir. Havia se encontrado, bem no meio da semana, com Gordo, apelido que não se aplicava muito bem a Gustavo, pois, pelo contrário, possuía tipo físico invejável. Recebera o apelido dos amigos – dos quais Caio fazia parte - ainda no ensino fundamental, quando poderia se dizer que era um garoto rechonchudo e de baixa estatura, e, desde então era reconhecido menos pelo nome do que pelo apelido. Caio precisava sair para desabafar, porém não havia convidado sua namorada. Certamente, nem poderia ter feito, pois o tema principal da noite era justamente ela.
Gordo era a sua companhia preferida quando desejava ter uma boa conversa. Ao longo dos anos, desenvolveram um forte e sincero laço de amizade. Atravessaram incontáveis madrugadas vasculhando o passado e confabulando sobre o presente e futuro. Pode-se dizer que eram bons companheiros para toda hora e qualquer assunto, fosse sobre estudos, trabalho, lazer ou paqueras. Ao convidá-lo para sair no dia anterior, Caio usara, não sem intenções de manipular o amigo, a palavra mágica: cerveja, e, dessa forma foi fácil convencê-lo a sacrificar algumas horas de sono.
Durante as primeiras rodadas de cerveja, conversaram sobre trivialidades, especialmente sobre esporte. Poderiam prolongar o assunto durante horas, mas não estavam ali pra isso. Convocara o amigo para conversar sobre a situação em que se encontrava com Júlia. Não vinha se sentindo confortável no relacionamento, especialmente com sua necessidade de estar com ele o tempo todo. Se dependesse dela, estariam juntos a todo o momento e em todos os lugares, e, com isso, sentia-se sufocado. Ela ainda não havia percebido, mas isso poderia levar a relação à ruína, pois, se havia algo que ele não suportava era a supressão de sua liberdade.
Nesse ponto, era singular. Chegava a ser intransigente a respeito de ter seu espaço e manter partes da sua individualidade intacta. Para ele, os relacionamentos amorosos deveriam, sim, ser sobre duas pessoas, mas não somente sobre elas. Certos afazeres, sentia mais prazer em fazê-los sozinho. Além disso, gostava de se encontrar com os amigos ou ter a companhia de seus familiares sem a presença de outra pessoa, pois estaria mais à vontade para falar sobre coisas que a presença de um par poderia censurar. Considerava isso natural, quase óbvio, mas surpreendia-se ao perceber que soava como uma injúria para as garotas com que até então havia se envolvido. Contudo, era coerente em sua posição, pois, sempre que podia a incentivava a encontrar satisfação em sua própria companhia e a sair com suas amigas sem a presença dele. Até sentia ciúmes, mas eram razoáveis e ele sabia que esse tipo de coisa faria bem a ambos.
Ficaram um bom tempo discutindo sobre o assunto. Gordo não economizava opiniões e conselhos, dos quais Caio acolhia de bom grado. Enquanto somavam-se horas e garrafas de cerveja, recordavam das moças que outrora haviam despertado um pouco mais do que o interesse deles, conquistando um espaço em suas memórias. Enquanto se lembravam de suas desventuras amorosas, sentiam reforçado o vínculo de amizade, munidos da certeza de que eram grandes amigos, o que naturalmente acontece entre os homens quando precisam falar sobre o amor e encontram um camarada interessado a ouvir, e que por fim acaba se abrindo também. Nesses momentos, são capazes de se reconhecer vulneráveis às mulheres e aos efeitos que só elas são capazes de provocar, e por fim se sentem confortados.
Depois de lida a mensagem, sua previsão foi confirmada. Mais uma vez entrariam em atrito por não ter cedido à vontade de sua namorada de se encontrar com ela. Antes mesmo de descer do coletivo, respondeu à mensagem de texto, porém sem muito ânimo. Há cerca de duas semanas o conflito se instalou entre os dois, e tudo que desejava era ter alguns dias tranquilos ao lado dela, como fora no início do namoro, mas isso parecia cada vez mais distante. Enquanto trabalhava, ainda trocaram algumas mensagens. Ela estava na faculdade e queria encontra-lo quando ele saísse do trabalho, mas ainda precisava encarar os estudos no turno da noite e não podia mais faltar às aulas. Entretanto ele gostaria de ficar com ela naquela noite e então resolveram que ele dormiria na casa dela. Depois do combinado, tiveram um momento de paz e ele pôde tentar se concentrar nos estudos.
Após algumas horas de aula, Caio não conseguiu conter o cansaço acumulado e despencou sobre a cadeira. Arranjou os livros dentro de sua mochila, encontrando a forma e o volume confortáveis suficientes para repousar sua cabeça. Finalmente havia encontrado uma utilidade para todos os livros que carregava em sua bolsa. Esboçou uma tentativa de continuar ouvindo seu professor enquanto estava de olhos fechados, mas foi vencido em poucos minutos.
Ao chegar à casa de Júlia, foi recebido com beijos, abraços e um sorriso jubiloso. Ela havia preparado um lanche farto que certamente iria agradá-lo. Desde que começaram a namorar, há aproximadamente oito meses, ele já havia ganhado cerca de três quilos, mas não se importava muito com isso e carinhosamente a culpava pelo fato. Depois da refeição, pediu uma toalha para tomar banho e se livrar de parte do cansaço. Os pais de Júlia haviam viajado e a casa ficaria só para ela por mais algumas semanas, e assim poderiam se sentir mais à vontade.
Ao sair do banho, trajava somente a toalha e foi presenteado com elogios repletos de libido. Ela exaltava o quanto o achava bonito e atraente. Deveras, Caio era dono de uma rara beleza, não daquelas que são encontradas na televisão ou em revistas, mas sim de uma beleza que se fazia valer mediante sua personalidade e seus trejeitos. Era alto, de porte físico mediano, quase atlético; possuía tímida saliência abdominal que apelidara de travesseiro natural. Era um rapaz de pele clara, cabelo escurecido e com os traços do rosto bem delineados. Com a ajuda de duas ou três frases apropriadas, poderia arrancar suspiros de belas garotas, mas, no momento, quem ensaiava ofegar era ele ao perceber as intenções de sua namorada em seu olhar.

sábado, 5 de janeiro de 2013

CAPÍTULO I - A PARTIR


           Enquanto fitava a grama verde do jardim numa tarde de domingo, Caio se deu conta de que mesmo se aquele instante fosse congelado para todo o sempre, ainda assim suas duvidas ecoariam sem fim. Entretanto, não eram os pensamentos dúbios que o prendiam ali, no quintal de sua confortável casa conquistada, sobretudo, com a ousadia que tivera nas decisões em determinada época de sua vida.
           Seus últimos meses foram incomuns o bastante para se direcionar pela certeza. De fato, certeza nunca foi o que mais lhe motivou, nem tampouco a responsável pelos seus passos mais importantes ou por suas maiores conquistas. Naquele momento, sozinho ao lado de todos os dispositivos tecnológicos e de comunicação, ao lado daquilo que em muito tempo fora sua maior companhia, tinha para si que o que o momento exigia não era pensar, avaliar e analisar. Agora, Caio sabia que precisava apenas fazer. Não podia, naquele instante, se dar ao luxo de exercer a razão, e isso não lhe era inédito. 
         Não sabia quanto tempo havia ficado ali, sentado em sua cadeira em meio à bagunça deixada pela festa da noite anterior. Ele, que detestava cigarros, havia consumido quase uma dezena deles enquanto toda a sua vida passeava pelos seus pensamentos. Velhos amigos da infância, brinquedos pelos quais teve apego quando criança, lugares em que havia morado, desavenças e reconciliações que tivera com sua família, antigas paixões e tudo aquilo que de certa forma havia marcado suas lembranças corriam pelos seus olhos com uma sensação de que tudo era novo, como se estivessem sendo vivenciados pela primeira vez, pelo menos naquele instante.
Caio estava prestes a tomar um caminho sem volta. Durante toda a sua vida sentira o chamado de seus impulsos para partir, mas sempre lhe faltava coragem. Diversas vezes foi seduzido pelo recomeço, pelo inesperado e por deixar tudo que havia construído e descontruído para trás. Para ele, soava como uma descabida possibilidade de redenção, de destituir-se das responsabilidades em que havia se metido para se prestar aos vislumbres que a nova vida poderia lhe oferecer, longe de tudo e de todos. Agora estava ali, a um passo de se render aos impulsos pela primeira vez. Sempre teve medo e receio por tudo o que poderia ser deixado, e os homens, quando sentem que tem algo a perder são facilmente desarmados pelo medo e frequentemente despidos de suas ideias audaciosas. Mas dessa vez ele não tinha muito que temer.
Agora era diferente, e, para Caio, essa era uma sensação rara, daquelas que não acometem um indivíduo sem um propósito. Não era triste e nem alegre, entretanto tais momentos incitavam resistência, clamavam pela permanência de sua rotina incerta, calculada pelos desajustes de um mundo muito planejado para ele. Não obstante, por mais força que essa resistência possuísse ela não seria forte o bastante para conter a torrente da impulsividade que naquele momento sentia transbordar.
Ali, sentado na varanda, desorientado no tempo, sentia-se ultrajado por lapsos de incerteza, embora não passassem de brisas ao muro. Por mais que sua decisão fosse audaz o bastante para deixar quase tudo para trás, Caio não se considerava incauto. Acreditava que o desfecho de uma vida não deveria ser monitorado pelos ponteiros do relógio, pelos dias do calendário, e muito menos pelos altos e baixos de uma máquina qualquer num hospital, afinal, um coração que dói e ainda assim não pára não tem prazo de validade bem definido.
Entretanto, a dor e a angustia daqueles que lhe eram caros poderia ser confortada com momentos alegres, como havia sido na festa do dia anterior com os amigos, regada a muita bebida e insensatez. Ou com uma visita inesperada que fizera aos pais para mais uma vez admirá-los e para relembrar dos incansáveis momentos em que, a despeito de todas as adversidades, sacrificaram-se incansavelmente para torná-lo o que era hoje. Ou ainda por uma noite inteira ao lado daquela que, para ele, durante anos a fio representava o mais belo significado da vida condensado e cativo na forma de uma extraordinária mulher. Há três dias, havia passado o que seria a sua ultima noite ao lado de sua noiva Fernanda, despertos por sexo, carícias, olhares recíprocos repletos de teor que dispensam palavras, e pela sensação provocada pelo terno abraço e pelo envolver de seus corpos, de que o mundo, para os dois, não precisa de mais nada.
Começava a anoitecer quando Caio reagiu ao estado semi-hipnótico ao qual se encontrava. Era hora de varrer a sujeira e de organizar a bagunça. Enquanto limpava a imundice explícita deixada pelos convidados em seu quintal, lembrou-se de momentos complicados, de erros que havia cometido e que afetaram pessoas que em outros momentos havia levado em alta conta, mas que suas participações no palco da vida foram encerradas pela lógica da ordem natural das coisas. Quando era mais jovem, tinha enorme dificuldade em se perdoar por tais erros, mas à medida que envelhecia percebia que isso não era nada além de algumas condições de estar vivo e de participar da desafiante dinâmica que as turvas curvas do destino nos submetem, e, por fim, foi capaz de superar o conflito. Outros erros, porém, que haviam sido cometidos com uma parcela de consentimento o atormentavam mais, e enquanto jogava água no chão para livrá-lo dos restos fétidos, relembrava cada um destes tristes episódios. Sentia-se assaltado por um sentimento de vergonha e pequenez. Com frequência pensava na possibilidade fictícia de voltar no tempo, e do que poderia fazer para evitar que todos aqueles fatos se repetissem. Entretanto, tinha a impressão de que o preço seria alto e de que deixaria de passar por muitas das inspiradoras experiências que havia vivenciado.
Caio possuía o hábito de reavaliar os árduos acontecimentos de outrora, e conseguia obter algum sucesso, não no sentido de reparar tudo de incerto que fizera, mas de evadir-se de muitas situações que causariam algum tipo de aborrecimento para as pessoas e para si, no presente ou no futuro próximo. Talvez seja esse um dos grandes motivos por ter desenvolvido um temperamento tão incomum que às vezes impressionava as pessoas, afinal, quem garante que a maneira estável e politicamente correta de se viver proporciona mais acertos do que erros? Para ele, era evidente que a coisa funcionava exatamente ao contrário. Em um mundo onde a ignorância muitas vezes nos leva à beatitude, aqueles que são atormentados por um juízo um pouco menos logrado precisam, de alguma forma, encontrar outra saída para estarem em paz não apenas com os outros, mas, na maioria das vezes, consigo.
Depois de algumas horas de árduo trabalho, Caio finalmente deixou sua morada totalmente limpa. O chão brilhava e os cômodos da casa apresentavam organização e ordem que nem ele próprio possuía. Gostaria que sua casa estivesse resplandecente, magistralmente asseada e bela, brilhante para o regresso de Fernanda.  Desejava que o lar – que de agora em diante pertenceria a uma única pessoa – refletisse da forma mais fiel possível tudo aquilo que sua companheira havia sido para ele. Por esse motivo se empenhou tanto em sua tarefa. 
Agora que via a casa tão limpa e cheirosa, dominada pela ordem que o deixava timidamente desconfortável, não conseguia parar de pensar em sua noiva. Como poderia ter se apaixonado tanto, se envolvido tão fervorosamente com alguém tão diferente dele? Esta foi, para Caio, uma das maiores e mais maravilhosas surpresas que a vida reservara. Não que as diferenças haviam facilitado o entendimento e a aproximação dos dois. De fato, isso nunca aconteceu, mas a pura vontade de estarem juntos, de construírem uma vida a dois ao passar do tempo e ao superar das dificuldades iniciais superava todo o tipo de trama que arriscava a se colocar entre os dois. A forma tão distinta que possuíam de encarar a vida jamais obedecera às leis da atração e tampouco os repelia. Por vezes, chegava a ser engraçado o modo como se desentendiam e voltavam a se entender.  Precisavam recorrer às mais rebuscadas formas de expressarem seus sentimentos e intenções, quando a compreensão necessária não exigia nada fora do comum. Os amigos – tanto de Caio como de Fernanda – nunca os entendiam perfeitamente, e os consideravam um casal a parte, do que, obviamente, ambos discordavam.
Já passava de meia noite quando resolveu dormir. Ao se deitar, foi dominado pelo súbito sentimento de nostalgia. Aquela seria a sua última noite naquela cama, naquela casa. Ao acordar, pegaria seus pertences há dias já separados e partiria para não mais voltar. Estava pouco preparado, sentia as pernas rijas e o coração doer só de pensar, mas precisava ser forte uma última vez. Estava certo de que, ao acordar, os ventos da manhã trariam como sopro a coragem necessária para resignar-se de tudo aquilo que havia constituído. De tudo aquilo que era parte de si e da sua história. Um pedaço dele certamente ficaria ali, naquela casa, nas pessoas que nela um dia adentraram. Mais uma vez, e não pela última, lembrou-se de como havia chegado até ali, até aquele momento. Lembrou-se dos amigos, da família, e, especialmente de Fernanda. Seria realmente melhor assim? Preocupou-se pouco com a resposta. Antes de se deitar, desejou ter como companhia suas músicas preferidas, aquelas que lhe marcavam de algum modo, por algum motivo. Selecionou todas as que conseguiu se lembrar sem fazer muito esforço para ouvir enquanto embalava no sono. Tinha certeza de que sentiria falta delas. Incontáveis vezes adormeceu ao som de suas músicas, e soavam como um remédio para os ouvidos e para a alma.  Este era mais um dos hábitos do qual se despediria esta noite.
Muitas lembranças ainda o atormentaram e algumas vezes as músicas se repetiram antes de pegar no sono. Quando acordou, elas ainda tocavam, e as lembranças não teriam o abandonado totalmente. Teve sonhos ininteligíveis, mas nada incomum. Ao dar os primeiros passos, ainda tropeçava em sua decisão. Definitivamente era a escolha mais difícil que havia tomado e só não a abandonava porque arquitetá-la foi um trabalho de meses. Ou talvez porque de fato os ventos matinais realmente haviam lhe trazido a coragem necessária para seguir adiante. Caio tomou seu café, se trocou, e, antes de partir, corrigiu a pequena bagunça que tinha feito. Muniu-se de toda a sua convicção, deu longa olhada para a casa. Reparou em cada detalhe na sala que antecedia a fachada. Respirou profunda e demoradamente, virou-se e saiu aos passos. Os mais pesados de sua vida. Deixou a casa limpa, brilhante, organizada e perfumada. Jamais voltaria a pisar ali.


Revisão: Sasha Garcia