Ouviram
outra explosão. Mais uma granada que havia explodido a poucos metros do
pelotão. Haviam coberto quilômetros sem se dar ao luxo do descanso, mas agora
estavam próximos demais do território inimigo e precisavam rever a estratégia
para continuar prosseguindo sem que tivessem mais perdas, e então pararam atrás de uma
barricada durante alguns segundos para recuperar o fôlego.
Em meio a uma sinfonia de balas
perdidas e achadas, explosões e gritos dos soldados, Caio olhava fixamente na
direção de um de seus companheiros. Perscrutava a mente daquele sujeito,
visualizando seus pensamentos materializados no centro da tempestade bélica.
Pôde entender, sem muito esforço, que aquele sujeito não estava preparado para
morrer, e por isso sentia correr em suas veias um medo desesperador, desvendado
pela percepção súbita que tivera acerca da fragilidade da vida. Há minutos
atrás, perderam o primeiro e terceiro sargento. Agora ele percebia que poderia
ter sido ele o alvo da escolha nefasta de seu Deus, e mesmo não estando
preparado, morreria satisfeito. Subiria para os eternos campos floridos e
reluzentes e seria reconhecido por ter cumprido o papel de um anjo armado,
designado a manter a desordem da sua espécie, e isso faria com que sua sanidade fosse mantida por mais algum tempo.
Caio teria ficado horas ali, desnudando
as verdades e motivações daquele soldado se ele não tivesse sido capaz de
perceber sua invasiva presença e rechaçá-lo com um olhar repleto de fúria que o
fez questionar, por um instante, se ainda estavam lutando no mesmo lado. Um
terceiro soldado que até então os observava com reprovação, gritou: -
Pensamentos não ganham guerra e muito menos salvam alguém, tem que socar! Caio
olhou imediatamente em sua direção e rapidamente o reconheceu. Tratava-se de
André, um rapaz robusto e expressivo. Eles haviam se conhecido há cerca de dez
anos, e desde então a amizade entre eles vinha se mostrando distinta.
Compartilhavam pensamentos e motivações que certamente soariam ininteligíveis à
maioria das pessoas. O modo de se relacionar entre eles não seguia padrão
algum, pelo contrário, a melhor forma que encontraram de se fazer entender, ao
passar dos anos, se dava através de diálogos ásperos e palavras ácidas o
bastante para corroer as defesas mais bem edificadas. Tinham consciência de que
um poderia conhecer mais do outro do que seria conveniente, e isso fazia com
que sempre mantivessem o respeito um pelo outro. Já haviam passado por
situações ainda mais delicadas do que a qual se encontravam, e por isso Caio se
sentiu mais confiante em saírem vitoriosos naquela batalha.
Não havia entendido muito bem o
significado das palavras de seu amigo, mas confiava nelas, e, mesmo que
representassem perigo, estava disposto a assumir os riscos. Sabia que teria de
liderar e dar esperança àqueles soldados, por mais que não guardasse muita para si
mesmo. Naquela situação, poder contar com André seria de enorme ajuda. Olhou
para ele, estudando sua expressão durante alguns segundos, e então perguntou em
voz baixa, inaudível aos outros soldados: - Direita ou esquerda? - Pra onde
estiver chovendo menos - respondeu o companheiro. Baseado na resposta que
obtivera, planejou a ação do grupo. A ordem era que todos perdessem o medo,
pois assim as balas não poderiam acertá-los. Deveriam andar em linha reta com a
proteção da coragem até que pudessem mirar de forma precisa nos soldados
inimigos, para finalmente derrotá-los.
Executavam o plano com perícia.
Ouviam-se tiros de várias direções e podiam ver as balas passando a centímetros
deles, mas nenhuma os acertava. Nem mesmo as explosões das granadas pareciam surtir algum
efeito, como se tudo não passasse de efeitos especiais de cinema, incapazes de
oferecer algum perigo ao pelotão. Quando chegaram à posição de ataque,
desferiram rajadas fatais. Caio observava, desde o início da caminhada, um
soldado inimigo cessar fogo logo após os primeiros disparos. Quando estavam
perto de conquistar a vitória, ordenou que não matassem aquele soldado. Alguns
dos soldados aliados o indagaram sobre sua decisão, outros esbravejaram,
questionando inclusive a autoridade que havia assumido subitamente, já que os
dois soldados de patentes superiores agora estavam mortos. Caio foi sucinto e
transparente ao deixar claro que não fazia questão alguma de estar no comando,
mas uma vez que lá se encontrava, teriam de concordar com seus motivos, pelo
menos até estarem totalmente a salvos, e depois ele poderia explicar a todos o
porquê de suas decisões.
Podia sentir, de alguma forma, as
intenções de cada soldado daquele pelotão. Consultou André sobre tudo que havia
acontecido desde que assumira o controle do grupo, mas ele apenas deu de
ombros. O motivo de maior discordância entre Caio e os soldados era o fato de
não fazer do inimigo capturado, um prisioneiro de guerra. Além de não amarrar
ou prender o inimigo de alguma forma, Caio exigiu que não lhe confiscassem nem
mesmo suas armas e acessórios. Ele parecia confiar e dar importância àquele
sujeito, entretanto não fez nenhuma pergunta, nem mesmo se interessou em saber
seu nome. Enquanto caminhavam, o inimigo capturado, que andava livremente entre
eles, se aproximou de André e perguntou: - Quem é ele? Ou melhor, o que é ele? André examinou aquele rapaz,
enquanto parecia procurar pela melhor resposta, e alguns instantes depois,
respondeu: - Seja lá o que for, ele é o aspecto da justiça, e não existe
justiça em assassinatos - O inimigo aceitou a resposta, e mesmo sem entendê-la
muito bem, não quis continuar indagando, pois sentia-se intimidado. De qualquer
forma, sentia-se grato por estar vivo.
Finalmente chegaram à base militar. Ela
se instalava no meio da primeira casa que Caio havia morado desde que sua
família se mudou para a cidade grande. A casa estava muito limpa, como sua mãe
costumava sempre deixar, e logo se entristeceu ao imaginar que os soldados, em
minutos, iriam desfazer o trabalho de limpeza e organização que ela havia
levado horas para fazer. Foi no quintal conferir se não havia espiões, e pôde
avistar a piscina de plástico que ele e seus irmãos costumavam usar quando eram
crianças. Teve vontade de se livrar da farda e entrar nela, mas seria muito
infantil para um militar, especialmente agora que estava no comando e precisava
dar exemplo aos seus subordinados. Parou durante um momento para admirar aquele
lugar. Era bom estar de volta, depois de tantos anos longe dali, ainda sentia
que aquele lugar pertencia a ele, como se fosse um importante elemento daquilo
que havia se tornado.
Contemplava aquele lugar com imensa
tranquilidade quando sentiu a mira a laser da arma apontando para ele,
lentamente subindo em suas costas, até que parou, ligeiramente à esquerda. Caio
sorriu desdenhoso e pensou “o idiota não sabe que meu coração fica em outro lugar...
de qualquer forma, eu não tenho medo mesmo, isso não pode me ferir”. Após
alguns segundos, virou-se para encarar o atirador, com o sorriso ainda em seu
rosto. Todos os outros soldados acompanhavam a cena sem se exaltarem. O
atirador era um dos soldados do pelotão, um dos únicos que até então não havia
se pronunciado. Caio sabia que ele pressionaria o gatilho em poucos instantes,
e apenas esperou pelo fato. Quando finalmente disparou e a bala saiu da arma,
sem barulho algum, Caio acordou assustado. Suava muito e seu travesseiro se encontrava completamente molhado. Sua respiração estava ofegante e sentia uma pontada de dor no peito,
na região do coração. Pulou da cama e foi tomar seu banho.
Revisão: Paulo Machado
Revisão: Paulo Machado