quinta-feira, 7 de março de 2013

CAPÍTULO IV - FILHOS DA NOITE: O CAMPO


Ouviram outra explosão. Mais uma granada que havia explodido a poucos metros do pelotão. Haviam coberto quilômetros sem se dar ao luxo do descanso, mas agora estavam próximos demais do território inimigo e precisavam rever a estratégia para continuar prosseguindo sem que tivessem mais perdas, e então pararam atrás de uma barricada durante alguns segundos para recuperar o fôlego.
Em meio a uma sinfonia de balas perdidas e achadas, explosões e gritos dos soldados, Caio olhava fixamente na direção de um de seus companheiros. Perscrutava a mente daquele sujeito, visualizando seus pensamentos materializados no centro da tempestade bélica. Pôde entender, sem muito esforço, que aquele sujeito não estava preparado para morrer, e por isso sentia correr em suas veias um medo desesperador, desvendado pela percepção súbita que tivera acerca da fragilidade da vida. Há minutos atrás, perderam o primeiro e terceiro sargento. Agora ele percebia que poderia ter sido ele o alvo da escolha nefasta de seu Deus, e mesmo não estando preparado, morreria satisfeito. Subiria para os eternos campos floridos e reluzentes e seria reconhecido por ter cumprido o papel de um anjo armado, designado a manter a desordem da sua espécie, e isso faria com que sua sanidade fosse mantida por mais algum tempo.
Caio teria ficado horas ali, desnudando as verdades e motivações daquele soldado se ele não tivesse sido capaz de perceber sua invasiva presença e rechaçá-lo com um olhar repleto de fúria que o fez questionar, por um instante, se ainda estavam lutando no mesmo lado. Um terceiro soldado que até então os observava com reprovação, gritou: - Pensamentos não ganham guerra e muito menos salvam alguém, tem que socar! Caio olhou imediatamente em sua direção e rapidamente o reconheceu. Tratava-se de André, um rapaz robusto e expressivo. Eles haviam se conhecido há cerca de dez anos, e desde então a amizade entre eles vinha se mostrando distinta. Compartilhavam pensamentos e motivações que certamente soariam ininteligíveis à maioria das pessoas. O modo de se relacionar entre eles não seguia padrão algum, pelo contrário, a melhor forma que encontraram de se fazer entender, ao passar dos anos, se dava através de diálogos ásperos e palavras ácidas o bastante para corroer as defesas mais bem edificadas. Tinham consciência de que um poderia conhecer mais do outro do que seria conveniente, e isso fazia com que sempre mantivessem o respeito um pelo outro. Já haviam passado por situações ainda mais delicadas do que a qual se encontravam, e por isso Caio se sentiu mais confiante em saírem vitoriosos naquela batalha.
Não havia entendido muito bem o significado das palavras de seu amigo, mas confiava nelas, e, mesmo que representassem perigo, estava disposto a assumir os riscos. Sabia que teria de liderar e dar esperança àqueles soldados, por mais que não guardasse muita para si mesmo. Naquela situação, poder contar com André seria de enorme ajuda. Olhou para ele, estudando sua expressão durante alguns segundos, e então perguntou em voz baixa, inaudível aos outros soldados: - Direita ou esquerda? - Pra onde estiver chovendo menos - respondeu o companheiro. Baseado na resposta que obtivera, planejou a ação do grupo. A ordem era que todos perdessem o medo, pois assim as balas não poderiam acertá-los. Deveriam andar em linha reta com a proteção da coragem até que pudessem mirar de forma precisa nos soldados inimigos, para finalmente derrotá-los.
Executavam o plano com perícia. Ouviam-se tiros de várias direções e podiam ver as balas passando a centímetros deles, mas nenhuma os acertava. Nem mesmo as explosões das granadas pareciam surtir algum efeito, como se tudo não passasse de efeitos especiais de cinema, incapazes de oferecer algum perigo ao pelotão. Quando chegaram à posição de ataque, desferiram rajadas fatais. Caio observava, desde o início da caminhada, um soldado inimigo cessar fogo logo após os primeiros disparos. Quando estavam perto de conquistar a vitória, ordenou que não matassem aquele soldado. Alguns dos soldados aliados o indagaram sobre sua decisão, outros esbravejaram, questionando inclusive a autoridade que havia assumido subitamente, já que os dois soldados de patentes superiores agora estavam mortos. Caio foi sucinto e transparente ao deixar claro que não fazia questão alguma de estar no comando, mas uma vez que lá se encontrava, teriam de concordar com seus motivos, pelo menos até estarem totalmente a salvos, e depois ele poderia explicar a todos o porquê de suas decisões.
Podia sentir, de alguma forma, as intenções de cada soldado daquele pelotão. Consultou André sobre tudo que havia acontecido desde que assumira o controle do grupo, mas ele apenas deu de ombros. O motivo de maior discordância entre Caio e os soldados era o fato de não fazer do inimigo capturado, um prisioneiro de guerra. Além de não amarrar ou prender o inimigo de alguma forma, Caio exigiu que não lhe confiscassem nem mesmo suas armas e acessórios. Ele parecia confiar e dar importância àquele sujeito, entretanto não fez nenhuma pergunta, nem mesmo se interessou em saber seu nome. Enquanto caminhavam, o inimigo capturado, que andava livremente entre eles, se aproximou de André e perguntou: - Quem é ele? Ou melhor, o que é ele? André examinou aquele rapaz, enquanto parecia procurar pela melhor resposta, e alguns instantes depois, respondeu: - Seja lá o que for, ele é o aspecto da justiça, e não existe justiça em assassinatos - O inimigo aceitou a resposta, e mesmo sem entendê-la muito bem, não quis continuar indagando, pois sentia-se intimidado. De qualquer forma, sentia-se grato por estar vivo.
Finalmente chegaram à base militar. Ela se instalava no meio da primeira casa que Caio havia morado desde que sua família se mudou para a cidade grande. A casa estava muito limpa, como sua mãe costumava sempre deixar, e logo se entristeceu ao imaginar que os soldados, em minutos, iriam desfazer o trabalho de limpeza e organização que ela havia levado horas para fazer. Foi no quintal conferir se não havia espiões, e pôde avistar a piscina de plástico que ele e seus irmãos costumavam usar quando eram crianças. Teve vontade de se livrar da farda e entrar nela, mas seria muito infantil para um militar, especialmente agora que estava no comando e precisava dar exemplo aos seus subordinados. Parou durante um momento para admirar aquele lugar. Era bom estar de volta, depois de tantos anos longe dali, ainda sentia que aquele lugar pertencia a ele, como se fosse um importante elemento daquilo que havia se tornado.
Contemplava aquele lugar com imensa tranquilidade quando sentiu a mira a laser da arma apontando para ele, lentamente subindo em suas costas, até que parou, ligeiramente à esquerda. Caio sorriu desdenhoso e pensou “o idiota não sabe que meu coração fica em outro lugar... de qualquer forma, eu não tenho medo mesmo, isso não pode me ferir”. Após alguns segundos, virou-se para encarar o atirador, com o sorriso ainda em seu rosto. Todos os outros soldados acompanhavam a cena sem se exaltarem. O atirador era um dos soldados do pelotão, um dos únicos que até então não havia se pronunciado. Caio sabia que ele pressionaria o gatilho em poucos instantes, e apenas esperou pelo fato. Quando finalmente disparou e a bala saiu da arma, sem barulho algum, Caio acordou assustado. Suava muito e seu travesseiro se encontrava completamente molhado. Sua respiração estava ofegante e sentia uma pontada de dor no peito, na região do coração. Pulou da cama e foi tomar seu banho.

Revisão: Paulo Machado

CAPÍTULO III - MUNDANÇAS


Caio acordou antes mesmo do alvorecer. Não conseguia dormir muito quando não estava em sua casa e somente por isso despertara tão cedo. Sentia-se pouco motivado a levantar, e, por um instante, teve vontade de renunciar ao trabalho e a qualquer outro compromisso para se entregar exclusivamente ao nada. Ao despontar de cada dia, tal sensação era uma das coisas que mais fazia sentido para ele, pelo menos durante alguns minutos.
Antes de reunir a valentia necessária para levantar, observou sua namorada por alguns segundos. Encontrava-se ainda despida e ele gostaria de ficar olhando para ela por mais alguns minutos. Júlia era uma moça muito bonita e sedutora. Loira, de pele clara, era razoavelmente alta e chamava atenção pelas suas curvas. Não lhe faltava seios, que eram bem dispostos. Possuía cintura fina e quadril largo, perfil preferido pela maioria dos homens.  Em seus vinte anos de idade, reunia o equilíbrio quase perfeito entre ingenuidade, experiência e um toque de mistério que a tornava ainda mais atraente.
Ao preparar seu café da manhã, decidiu retribuir o agrado que ela fizera para ele na noite anterior. Comeu com pressa e levou a bandeja para o quarto de Júlia. Nela continha pão integral, queijo, suco e frutas da estação. Ao ser acordada, ficou contente com a pequena surpresa que havia sido preparada para ela e retribuiu com um sincero e demorado sorriso. Caio rapidamente tomou um banho e se apressou para sair, pois estava atrasado. Ao se despedir, foi alvejado pela sedução de Júlia, que insistia em ter mais alguns instantes de privacidade com ele. Ela usou todo o repertório de golpes baixos que possuía, e quando tudo indicava que ele iria ceder, se recompôs a tempo de sair às pressas, esbarrando em todos os móveis que encontrou até chegar a porta.
Dessa vez o trajeto lhe apresentaria algumas novidades, pois não era muito comum dormir na casa de Júlia e não conhecia bem aquela região da cidade, e assim a viagem seria menos enfadonha. Chegando ao trabalho, foi avisado que receberia durante a tarde, a visita de Ernesto, representante de uma organização que mantinha valorosos negócios com a empresa em que trabalhava. Sempre que possível, preferia resolver as pendências burocráticas com Caio, pois ele recorria a métodos - inclusive os inofensivamente ilícitos – de agilizar todo o processo. Ernesto sentia-se muito grato por isso.
Ainda no período da manhã, enquanto fazia seu serviço com a meia vontade habitual, mas sem deixar de cumprir o que lhe fora designado, recebeu grande quantidade de mensagens de Júlia. Por mais que se esforçasse para não se enfastiar e para ser o companheiro que ela desejava, não conseguiu conter sua irritação e parou de responder depois de certo tempo. Por mais que tentasse, não entendia a origem de tamanha necessidade que ela possuía de sentir-se próxima dele. Às vezes simplesmente faltava assunto e chegava a hora de cada um cuidar de seu quinhão, mas a inabilidade dela não apenas o espantava; o irritava, por mais paciente e tolerante que fosse. Entretanto, toda essa demanda de sua namorada se mostrava capciosa, pois diversas vezes encontrou-se mergulhado em pensamentos de grandeza, devido à altura em que ela o colocava, se achando o homem mais interessante do mundo. Não era tolo o bastante para deixar-se enganar por muito tempo. Sabia muito bem qual era o seu lugar e rapidamente voltava para ele.
O fim da tarde se aproximava quando foi surpreendido por Ernesto. Apressadamente terminava algumas tarefas e nem o notou entrar pela porta de sua sala, sem discrição alguma. Desde sua chegada, rompeu o silêncio que imperava e não poupou conversas fiadas, animando Caio que retribuía quase na mesma moeda, porém com um pouco mais de formalidade. Ele gostava daquele sujeito de meia idade, e até se inspirava nele. Ernesto era dono de uma importante função em seu trabalho e tratava isso com a maior leveza possível. Relacionava-se da mesma forma com qualquer pessoa, sem discriminações mesquinhas, mas o que mais o impressionava era sua forma inusitada e bem humorada de lidar com assuntos sérios. Mais uma vez, e não pela última, Caio se perguntou se Ernesto já havia superado a fase de se aborrecer com os desassossegos da vida, e sentiu-se envergonhado por ter se irritado tanto com Júlia.
Quando resolveu falar de trabalho, Ernesto foi o surpreendido da vez. Mal precisou dizer o que precisava e Caio já apresentara tudo pronto, demonstrando agilidade e precisão que o impressionou. Ele, que nos últimos meses vinha desenvolvendo certa afeição por Caio e por suas prestezas pôde confirmar sua suspeita sobre o potencial daquele garoto e, olhando para ele de soslaio, comentou:
- Você apresenta qualidades incomuns pro que faz, rapaz...
- Como assim?
- Tenho reparado em você, em como consegue contornar e até evitar os problemas, como está atento no que acontece ao seu redor, como consegue dar um jeitinho de resolver tudo mais rápido... Você não se considera desperdiçado aqui nessa sala, sufocado com esses papéis que falam muito, mas não dizem nada?
- É um bom emprego, sou bem recebido aqui e procuro fazer o que me pedem.
- E o que não te pedem também.
- Ah, sim, às vezes... Não é o trabalho mais motivador e desafiador, mas pra quem ainda não concluiu os estudos está de bom tamanho. Pelo menos por enquanto.
-Por enquanto, é? A empresa que trabalho irá em breve expandir, criar novas filiais. Eu serei o responsável por uma delas e não acredito que conseguirei fazer isso sozinho. Estou ficando velho e preciso de gente nova comigo. Alguém que consiga se virar, que não dependa de ordens diretas e que tenha condições de tomar decisões importantes, até mesmo na minha ausência. Está me entendendo, filho?
-Perfeitamente.
-Anote aqui o número do seu telefone, ele poderá tocar logo em breve. Esteja preparado para algumas mudanças, pode ser que elas aconteçam.
Caio assistia Ernesto deixar sua sala com passos desapressados enquanto seu coração vagarosamente desacelerava. Ele não esperava por uma surpresa dessas, e por mais que não se tratasse de uma oferta de trabalho oficial, foi o suficiente para renovar seus ânimos. Pululando excitação, tentou preparar-se para os estudos. Dessa vez não dormiria durante as aulas, pois estava animado demais para ser vencido pelo cansaço. Escreveu para Júlia contando a novidade. Havia realmente se animado muito. Ao deixar o prédio, despediu-se do porteiro com um largo sorriso. Teve a sensação de que sentiria falta dele se não mais pisasse ali quase todos os dias da semana. Naquele dia, nem o transporte público iria conter sua animação.

Revisão: Paulo Machado