quinta-feira, 7 de março de 2013

CAPÍTULO III - MUNDANÇAS


Caio acordou antes mesmo do alvorecer. Não conseguia dormir muito quando não estava em sua casa e somente por isso despertara tão cedo. Sentia-se pouco motivado a levantar, e, por um instante, teve vontade de renunciar ao trabalho e a qualquer outro compromisso para se entregar exclusivamente ao nada. Ao despontar de cada dia, tal sensação era uma das coisas que mais fazia sentido para ele, pelo menos durante alguns minutos.
Antes de reunir a valentia necessária para levantar, observou sua namorada por alguns segundos. Encontrava-se ainda despida e ele gostaria de ficar olhando para ela por mais alguns minutos. Júlia era uma moça muito bonita e sedutora. Loira, de pele clara, era razoavelmente alta e chamava atenção pelas suas curvas. Não lhe faltava seios, que eram bem dispostos. Possuía cintura fina e quadril largo, perfil preferido pela maioria dos homens.  Em seus vinte anos de idade, reunia o equilíbrio quase perfeito entre ingenuidade, experiência e um toque de mistério que a tornava ainda mais atraente.
Ao preparar seu café da manhã, decidiu retribuir o agrado que ela fizera para ele na noite anterior. Comeu com pressa e levou a bandeja para o quarto de Júlia. Nela continha pão integral, queijo, suco e frutas da estação. Ao ser acordada, ficou contente com a pequena surpresa que havia sido preparada para ela e retribuiu com um sincero e demorado sorriso. Caio rapidamente tomou um banho e se apressou para sair, pois estava atrasado. Ao se despedir, foi alvejado pela sedução de Júlia, que insistia em ter mais alguns instantes de privacidade com ele. Ela usou todo o repertório de golpes baixos que possuía, e quando tudo indicava que ele iria ceder, se recompôs a tempo de sair às pressas, esbarrando em todos os móveis que encontrou até chegar a porta.
Dessa vez o trajeto lhe apresentaria algumas novidades, pois não era muito comum dormir na casa de Júlia e não conhecia bem aquela região da cidade, e assim a viagem seria menos enfadonha. Chegando ao trabalho, foi avisado que receberia durante a tarde, a visita de Ernesto, representante de uma organização que mantinha valorosos negócios com a empresa em que trabalhava. Sempre que possível, preferia resolver as pendências burocráticas com Caio, pois ele recorria a métodos - inclusive os inofensivamente ilícitos – de agilizar todo o processo. Ernesto sentia-se muito grato por isso.
Ainda no período da manhã, enquanto fazia seu serviço com a meia vontade habitual, mas sem deixar de cumprir o que lhe fora designado, recebeu grande quantidade de mensagens de Júlia. Por mais que se esforçasse para não se enfastiar e para ser o companheiro que ela desejava, não conseguiu conter sua irritação e parou de responder depois de certo tempo. Por mais que tentasse, não entendia a origem de tamanha necessidade que ela possuía de sentir-se próxima dele. Às vezes simplesmente faltava assunto e chegava a hora de cada um cuidar de seu quinhão, mas a inabilidade dela não apenas o espantava; o irritava, por mais paciente e tolerante que fosse. Entretanto, toda essa demanda de sua namorada se mostrava capciosa, pois diversas vezes encontrou-se mergulhado em pensamentos de grandeza, devido à altura em que ela o colocava, se achando o homem mais interessante do mundo. Não era tolo o bastante para deixar-se enganar por muito tempo. Sabia muito bem qual era o seu lugar e rapidamente voltava para ele.
O fim da tarde se aproximava quando foi surpreendido por Ernesto. Apressadamente terminava algumas tarefas e nem o notou entrar pela porta de sua sala, sem discrição alguma. Desde sua chegada, rompeu o silêncio que imperava e não poupou conversas fiadas, animando Caio que retribuía quase na mesma moeda, porém com um pouco mais de formalidade. Ele gostava daquele sujeito de meia idade, e até se inspirava nele. Ernesto era dono de uma importante função em seu trabalho e tratava isso com a maior leveza possível. Relacionava-se da mesma forma com qualquer pessoa, sem discriminações mesquinhas, mas o que mais o impressionava era sua forma inusitada e bem humorada de lidar com assuntos sérios. Mais uma vez, e não pela última, Caio se perguntou se Ernesto já havia superado a fase de se aborrecer com os desassossegos da vida, e sentiu-se envergonhado por ter se irritado tanto com Júlia.
Quando resolveu falar de trabalho, Ernesto foi o surpreendido da vez. Mal precisou dizer o que precisava e Caio já apresentara tudo pronto, demonstrando agilidade e precisão que o impressionou. Ele, que nos últimos meses vinha desenvolvendo certa afeição por Caio e por suas prestezas pôde confirmar sua suspeita sobre o potencial daquele garoto e, olhando para ele de soslaio, comentou:
- Você apresenta qualidades incomuns pro que faz, rapaz...
- Como assim?
- Tenho reparado em você, em como consegue contornar e até evitar os problemas, como está atento no que acontece ao seu redor, como consegue dar um jeitinho de resolver tudo mais rápido... Você não se considera desperdiçado aqui nessa sala, sufocado com esses papéis que falam muito, mas não dizem nada?
- É um bom emprego, sou bem recebido aqui e procuro fazer o que me pedem.
- E o que não te pedem também.
- Ah, sim, às vezes... Não é o trabalho mais motivador e desafiador, mas pra quem ainda não concluiu os estudos está de bom tamanho. Pelo menos por enquanto.
-Por enquanto, é? A empresa que trabalho irá em breve expandir, criar novas filiais. Eu serei o responsável por uma delas e não acredito que conseguirei fazer isso sozinho. Estou ficando velho e preciso de gente nova comigo. Alguém que consiga se virar, que não dependa de ordens diretas e que tenha condições de tomar decisões importantes, até mesmo na minha ausência. Está me entendendo, filho?
-Perfeitamente.
-Anote aqui o número do seu telefone, ele poderá tocar logo em breve. Esteja preparado para algumas mudanças, pode ser que elas aconteçam.
Caio assistia Ernesto deixar sua sala com passos desapressados enquanto seu coração vagarosamente desacelerava. Ele não esperava por uma surpresa dessas, e por mais que não se tratasse de uma oferta de trabalho oficial, foi o suficiente para renovar seus ânimos. Pululando excitação, tentou preparar-se para os estudos. Dessa vez não dormiria durante as aulas, pois estava animado demais para ser vencido pelo cansaço. Escreveu para Júlia contando a novidade. Havia realmente se animado muito. Ao deixar o prédio, despediu-se do porteiro com um largo sorriso. Teve a sensação de que sentiria falta dele se não mais pisasse ali quase todos os dias da semana. Naquele dia, nem o transporte público iria conter sua animação.

Revisão: Paulo Machado

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