Pouco antes de tocar o despertador,
Caio já se encontrava acordado. Havia se antecipado ao alarme que anunciava o
novo dia. Mais uma vez enfrentaria a rotina dos estudos e do trabalho, sua
principal fonte de renda e responsável pelo luxo das contas pagas. Precisava, a
cada dia, depender menos da ajuda financeira de seus pais. Com o seu salário,
contribuía simbolicamente no orçamento da casa onde vivia com sua mãe e pagava
seus estudos, embora não sobrasse muita coisa que lhe permitisse certas
vaidades.
Levantou, como em qualquer outro dia,
de mau humor e com poucas palavras a oferecer. Vagarosamente preparou seu café
da manhã na companhia de Lúcia, sua mãe. Habitualmente, ela acordava
antes mesmo dele, desperta pela coerente preocupação de que seu filho pudesse
se atrasar. Atualmente era este o momento que tinha a companhia de Caio por
mais tempo e não hesitava em aproveitar cada segundo.
Desde que seu filho começou a
trabalhar em período integral, Lúcia sentia-se solitária, invadida pela falta
das molecagens que ele costumava fazer para entretê-la, como os momentos em que
a importunara ao abrir os braços em sua frente, bloqueando o caminho de um
cômodo da casa para o outro e fazendo com que ela ficasse minutos por ali,
procurando uma forma de se livrar. Ou de quando tentava estabelecer um diálogo
e só obtinha como resposta uma mesma palavra qualquer sem sentido algum,
independente do que ela dizia. Ou ainda de quando ele inventava histórias
absurdas e ela se deixava ludibriar, mesmo conhecendo o tipo. Ela ansiava pela
conclusão de seus estudos, e, enquanto o observava em seu desjejum, comentou:
- Ano que vem você não
precisará acordar tão cedo, vai poder dormir mais um pouquinho...
- Não sei se será assim, tão
fácil.
- Você terá finalmente
terminado os seus estudos, será mais
fácil conseguir alguma coisa mais perto e que pague melhor.
- Talvez... Não consigo
entender o que acontece. Todas essas oportunidades de emprego que aparecem,
tenho certeza de que vou bem nas entrevistas, melhor que a maioria dos
concorrentes, e ainda assim não sou o escolhido! Isso me deixa frustrado.
- Não precisa se irritar.
Talvez seja melhor assim, pelo menos por enquanto. Deus vai ajudar para que
tudo dê certo. Tenho certeza que o sucesso está por vir, você sabe do seu
potencial. E sabe também que isso não é papo de mãe coruja.
- Tudo isso parece um jogo,
como uma partida de xadrez. Que Ele ajude quem só enxerga o preto e o branco do
seu tabuleiro. Aqui embaixo há muito mais o que se levar em conta e a vida não me
deu tempo para tomar decisões em turnos. Eu só preciso estar mais atento e
atender às expectativas, coisa que não venho conseguindo fazer.
- Às vezes você é muito
orgulhoso, quer sempre se virar sozinho. Deveria se permitir receber mais
ajuda, principalmente das pessoas que lhe querem bem.
- Mas eu permito, mãe. Até de
pessoas que nem percebem que estão me ajudando de alguma forma. Só não faço
questão que elas se deem conta disso, da mesma forma que não faço questão
alguma de obter algum retorno quando ajudo alguém.
Caio se aproximava dos vinte e cinco
anos de idade e ainda não havia concluído o curso superior. Grande parte dos
alunos conseguia terminar antes mesmo dos vinte e dois e por este motivo ele se
sentia atrasado. Ao sair do ensino médio, fizera algumas escolhas incertas e
acabou mudando de área duas vezes, mas agora estava convicto de sua escolha e
aspirava ascender profissionalmente assim que recebesse seu diploma. Até chegar
lá, convivia bem com o que tinha.
Antes de sair, pegou tudo o que lhe
seria necessário: celular, fone de ouvido, agenda, e sua bolsa com todos os
livros, tanto os que usaria quanto os que não. Enquanto esperava pelo
transporte coletivo, fechou-se para o mundo ao se equipar com o fone. Não
demorou muito tempo e avistou o ônibus se aproximando. Enquanto esperava por
ele, acompanhava mentalmente a letra das músicas e sorriu ao passar pelo trecho
I’m on the highway to hell. Era como
uma coincidência poética, pois detestava o seu trabalho e a função que cumpria.
Todos os dias, enfrentava documentos e burocracia o suficiente para esgotá-lo
ao final do expediente.
Tinha para si que estava no lugar e
na função errada. Considerava-se muito criativo perspicaz para passar o dia
sentado em um trono de papéis. De fato, era dono de um raciocínio muito ágil e
possuía uma capacidade para resolver problemas fora do comum. Seria um
desperdício continuar ali por muito tempo, mas sabia que era necessário deixar
a sua empresa para mudar de função, pois ela era inflexível demais para ele.
Geralmente, só começava a funcionar
bem quando já estava a caminho do trabalho. Sua mente divagava pela manhã e
somente quando exercia algum esforço mental, observando as pessoas e a
paisagem, passava a tomar as rédeas dos seus pensamentos. Sentado em um banco
numa das últimas fileiras, olhava fixamente para fora da janela, entretanto
quase não prestava atenção, pois o trajeto não lhe apresentava muitas novidades.
Ficaria ali cerca de uma hora e tinha o mapa de todo o caminho formado na sua
cabeça. Mesmo se fechasse os olhos poderia se orientar pelas curvas e freadas
do automóvel e precisar razoavelmente o local onde se encontrava. Havia
adquirido tal habilidade muito mais em função de sua dependência do transporte
coletivo do que por um senso de direção aguçado.
Quadras foram superadas, músicas
celebradas, e, quando se aproximava do seu destino, foi solicitado pelo bip do
celular. Havia recebido uma mensagem de texto e a remetente era Júlia, sua
namorada. Antes de ler, supôs que reclamações sobre a sua saída na noite
anterior estavam por vir. Havia se encontrado, bem no meio da semana, com
Gordo, apelido que não se aplicava muito bem a Gustavo, pois, pelo contrário,
possuía tipo físico invejável. Recebera o apelido dos amigos – dos quais Caio
fazia parte - ainda no ensino fundamental, quando poderia se dizer que era um
garoto rechonchudo e de baixa estatura, e, desde então era reconhecido menos
pelo nome do que pelo apelido. Caio precisava sair para desabafar, porém não
havia convidado sua namorada. Certamente, nem poderia ter feito, pois o tema
principal da noite era justamente ela.
Gordo era a sua companhia preferida
quando desejava ter uma boa conversa. Ao longo dos anos, desenvolveram um forte
e sincero laço de amizade. Atravessaram incontáveis madrugadas vasculhando o
passado e confabulando sobre o presente e futuro. Pode-se dizer que eram bons
companheiros para toda hora e qualquer assunto, fosse sobre estudos, trabalho,
lazer ou paqueras. Ao convidá-lo para sair no dia anterior, Caio usara, não sem
intenções de manipular o amigo, a palavra mágica: cerveja, e, dessa forma foi
fácil convencê-lo a sacrificar algumas horas de sono.
Durante as primeiras rodadas de
cerveja, conversaram sobre trivialidades, especialmente sobre esporte. Poderiam
prolongar o assunto durante horas, mas não estavam ali pra isso. Convocara o
amigo para conversar sobre a situação em que se encontrava com Júlia. Não vinha
se sentindo confortável no relacionamento, especialmente com sua necessidade de
estar com ele o tempo todo. Se dependesse dela, estariam juntos a todo o momento e em todos
os lugares, e, com isso, sentia-se sufocado. Ela ainda não havia percebido, mas
isso poderia levar a relação à ruína, pois, se havia algo que ele não suportava
era a supressão de sua liberdade.
Nesse ponto, era singular. Chegava a
ser intransigente a respeito de ter seu espaço e manter partes da sua
individualidade intacta. Para ele, os relacionamentos amorosos deveriam, sim,
ser sobre duas pessoas, mas não somente sobre elas. Certos afazeres, sentia
mais prazer em fazê-los sozinho. Além disso, gostava de se encontrar com os
amigos ou ter a companhia de seus familiares sem a presença de outra pessoa,
pois estaria mais à vontade para falar sobre coisas que a presença de um par
poderia censurar. Considerava isso natural, quase óbvio, mas surpreendia-se ao
perceber que soava como uma injúria para as garotas com que até então havia se
envolvido. Contudo, era coerente em sua posição, pois, sempre que podia a
incentivava a encontrar satisfação em sua própria companhia e a sair com suas
amigas sem a presença dele. Até sentia ciúmes, mas eram razoáveis e ele sabia
que esse tipo de coisa faria bem a ambos.
Ficaram um bom tempo discutindo sobre
o assunto. Gordo não economizava opiniões e conselhos, dos quais Caio acolhia
de bom grado. Enquanto somavam-se horas e garrafas de cerveja, recordavam das
moças que outrora haviam despertado um pouco mais do que o interesse deles,
conquistando um espaço em suas memórias. Enquanto se lembravam de suas
desventuras amorosas, sentiam reforçado o vínculo de amizade, munidos da
certeza de que eram grandes amigos, o que naturalmente acontece entre os homens
quando precisam falar sobre o amor e encontram um camarada interessado a ouvir,
e que por fim acaba se abrindo também. Nesses momentos, são capazes de se
reconhecer vulneráveis às mulheres e aos efeitos que só elas são capazes de
provocar, e por fim se sentem confortados.
Depois de lida a mensagem, sua
previsão foi confirmada. Mais uma vez entrariam em atrito por não ter cedido à
vontade de sua namorada de se encontrar com ela. Antes mesmo de descer do
coletivo, respondeu à mensagem de texto, porém sem muito ânimo. Há cerca de
duas semanas o conflito se instalou entre os dois, e tudo que desejava era ter
alguns dias tranquilos ao lado dela, como fora no início do namoro, mas isso
parecia cada vez mais distante. Enquanto trabalhava, ainda trocaram algumas
mensagens. Ela estava na faculdade e queria encontra-lo quando ele saísse do
trabalho, mas ainda precisava encarar os estudos no turno da noite e não podia
mais faltar às aulas. Entretanto ele gostaria de ficar com ela naquela noite e
então resolveram que ele dormiria na casa dela. Depois do combinado, tiveram um
momento de paz e ele pôde tentar se concentrar nos estudos.
Após algumas horas de aula, Caio não
conseguiu conter o cansaço acumulado e despencou sobre a cadeira. Arranjou os
livros dentro de sua mochila, encontrando a forma e o volume confortáveis
suficientes para repousar sua cabeça. Finalmente havia encontrado uma utilidade
para todos os livros que carregava em sua bolsa. Esboçou uma tentativa de
continuar ouvindo seu professor enquanto estava de olhos fechados, mas foi
vencido em poucos minutos.
Ao chegar à casa de Júlia, foi
recebido com beijos, abraços e um sorriso jubiloso. Ela havia preparado um
lanche farto que certamente iria agradá-lo. Desde que começaram a namorar, há
aproximadamente oito meses, ele já havia ganhado cerca de três quilos, mas não
se importava muito com isso e carinhosamente a culpava pelo fato. Depois da
refeição, pediu uma toalha para tomar banho e se livrar de parte do cansaço. Os
pais de Júlia haviam viajado e a casa ficaria só para ela por mais algumas
semanas, e assim poderiam se sentir mais à vontade.
Ao sair do banho, trajava somente a
toalha e foi presenteado com elogios repletos de libido. Ela exaltava o quanto
o achava bonito e atraente. Deveras, Caio era dono de uma rara beleza, não daquelas
que são encontradas na televisão ou em revistas, mas sim de uma beleza que se
fazia valer mediante sua personalidade e seus trejeitos. Era alto, de porte
físico mediano, quase atlético; possuía tímida saliência abdominal que
apelidara de travesseiro natural. Era um rapaz de pele clara, cabelo escurecido
e com os traços do rosto bem delineados. Com a ajuda de duas ou três frases
apropriadas, poderia arrancar suspiros de belas garotas, mas, no momento, quem ensaiava
ofegar era ele ao perceber as intenções de sua namorada em seu olhar.
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