Enquanto fitava a grama verde do jardim numa tarde de domingo, Caio se deu conta de que mesmo se
aquele instante fosse congelado para todo o sempre, ainda assim suas duvidas
ecoariam sem fim. Entretanto, não eram os pensamentos dúbios que o prendiam ali,
no quintal de sua confortável casa conquistada, sobretudo, com a ousadia que
tivera nas decisões em determinada época de sua vida.
Seus últimos meses foram incomuns o bastante para se direcionar pela certeza. De fato, certeza nunca foi o que mais lhe motivou, nem tampouco a responsável pelos seus passos mais importantes ou por suas maiores conquistas. Naquele momento, sozinho
ao lado de todos os dispositivos tecnológicos e de comunicação, ao lado daquilo
que em muito tempo fora sua maior companhia, tinha para si que o que o momento
exigia não era pensar, avaliar e analisar. Agora, Caio sabia que precisava
apenas fazer. Não podia, naquele instante, se dar ao luxo de exercer a razão, e
isso não lhe era inédito.
Não
sabia quanto tempo havia ficado ali, sentado em sua cadeira em meio à bagunça
deixada pela festa da noite anterior. Ele, que detestava cigarros, havia
consumido quase uma dezena deles enquanto toda a sua vida passeava pelos seus
pensamentos. Velhos amigos da infância, brinquedos pelos quais teve apego
quando criança, lugares em que havia morado, desavenças e reconciliações que
tivera com sua família, antigas paixões e tudo aquilo que de certa forma havia
marcado suas lembranças corriam pelos seus olhos com uma sensação de que tudo
era novo, como se estivessem sendo vivenciados pela primeira vez, pelo menos
naquele instante.
Caio estava
prestes a tomar um caminho sem volta. Durante toda a sua vida sentira o
chamado de seus impulsos para partir, mas sempre lhe faltava coragem. Diversas
vezes foi seduzido pelo recomeço, pelo inesperado e por deixar tudo que havia
construído e descontruído para trás. Para ele, soava como uma descabida
possibilidade de redenção, de destituir-se das responsabilidades em que havia
se metido para se prestar aos vislumbres que a nova vida poderia lhe oferecer,
longe de tudo e de todos. Agora estava
ali, a um passo de se render aos impulsos pela primeira vez. Sempre teve medo
e receio por tudo o que poderia ser deixado, e os homens, quando sentem que tem
algo a perder são facilmente desarmados pelo medo e frequentemente despidos de
suas ideias audaciosas. Mas dessa vez ele não tinha muito que temer.
Agora era
diferente, e, para Caio, essa era uma sensação rara, daquelas que não acometem
um indivíduo sem um propósito. Não era triste e nem alegre, entretanto tais
momentos incitavam resistência, clamavam pela permanência de sua rotina
incerta, calculada pelos desajustes de um mundo muito planejado para ele. Não
obstante, por mais força que essa resistência possuísse ela não seria forte o
bastante para conter a torrente da impulsividade que naquele momento sentia
transbordar.
Ali,
sentado na varanda, desorientado no tempo, sentia-se ultrajado por lapsos de
incerteza, embora não passassem de brisas ao muro. Por mais que sua decisão fosse audaz o bastante
para deixar quase tudo para trás, Caio não se considerava incauto. Acreditava
que o desfecho de uma vida não deveria ser monitorado pelos ponteiros do
relógio, pelos dias do calendário, e muito menos pelos altos e baixos de uma
máquina qualquer num hospital, afinal, um coração que dói e ainda assim não
pára não tem prazo de validade bem definido.
Entretanto, a
dor e a angustia daqueles que lhe eram caros poderia ser confortada com
momentos alegres, como havia sido na festa do dia anterior com os amigos,
regada a muita bebida e insensatez. Ou com uma visita inesperada que fizera aos
pais para mais uma vez admirá-los e para relembrar dos incansáveis momentos em
que, a despeito de todas as adversidades, sacrificaram-se incansavelmente para torná-lo
o que era hoje. Ou ainda por uma noite inteira ao lado daquela que, para ele,
durante anos a fio representava o mais belo significado da vida condensado e cativo na forma de uma
extraordinária mulher. Há três dias, havia passado o que seria a sua ultima noite ao
lado de sua noiva Fernanda, despertos por sexo, carícias, olhares recíprocos repletos de
teor que dispensam palavras, e pela sensação provocada pelo terno abraço e pelo
envolver de seus corpos, de que o mundo, para os dois, não precisa de mais
nada.
Começava
a anoitecer quando Caio reagiu ao estado semi-hipnótico ao qual se encontrava.
Era hora de varrer a sujeira e de organizar a bagunça. Enquanto limpava a
imundice explícita deixada pelos convidados em seu quintal, lembrou-se de
momentos complicados, de erros que havia cometido e que afetaram pessoas que em outros momentos
havia levado em alta conta, mas que suas participações no palco da vida foram
encerradas pela lógica da ordem natural das coisas. Quando era mais jovem, tinha enorme
dificuldade em se perdoar por tais erros, mas à medida que envelhecia percebia
que isso não era nada além de algumas condições de estar vivo e de participar
da desafiante dinâmica que as turvas curvas do destino nos submetem, e, por fim, foi capaz de superar o conflito. Outros erros, porém, que haviam sido cometidos com uma parcela de consentimento
o atormentavam mais, e enquanto jogava água no chão para livrá-lo dos restos
fétidos, relembrava cada um destes tristes episódios. Sentia-se assaltado por um sentimento de vergonha e pequenez. Com frequência pensava na
possibilidade fictícia de voltar no tempo, e do que poderia fazer para evitar
que todos aqueles fatos se repetissem. Entretanto, tinha a impressão de que o
preço seria alto e de que deixaria de passar por muitas das inspiradoras experiências
que havia vivenciado.
Caio
possuía o hábito de reavaliar os árduos acontecimentos de outrora, e conseguia
obter algum sucesso, não no sentido de reparar tudo de incerto que fizera, mas de
evadir-se de muitas situações que causariam algum tipo de aborrecimento para as
pessoas e para si, no presente ou no futuro próximo. Talvez seja esse um dos
grandes motivos por ter desenvolvido um temperamento tão incomum que às vezes
impressionava as pessoas, afinal, quem garante que a maneira estável e
politicamente correta de se viver proporciona mais acertos do que erros? Para
ele, era evidente que a coisa funcionava exatamente ao contrário. Em um mundo
onde a ignorância muitas vezes nos leva à beatitude, aqueles que são
atormentados por um juízo um pouco menos logrado precisam, de alguma forma,
encontrar outra saída para estarem em paz não apenas com os outros, mas, na
maioria das vezes, consigo.
Depois
de algumas horas de árduo
trabalho, Caio finalmente deixou sua morada totalmente limpa. O chão
brilhava e os cômodos da casa apresentavam organização e ordem que nem ele
próprio possuía. Gostaria que sua casa estivesse resplandecente, magistralmente
asseada e bela, brilhante para o regresso de Fernanda. Desejava que o lar – que de agora em diante
pertenceria a uma única pessoa – refletisse da forma mais fiel possível tudo
aquilo que sua companheira havia sido para ele. Por esse motivo se empenhou
tanto em sua tarefa.
Agora que via a casa tão
limpa e cheirosa, dominada pela ordem que o deixava timidamente desconfortável,
não conseguia parar de pensar em sua noiva. Como poderia ter se apaixonado
tanto, se envolvido tão fervorosamente com alguém tão diferente dele? Esta
foi, para Caio, uma das maiores e mais maravilhosas surpresas que a vida
reservara. Não que as diferenças haviam facilitado o entendimento e a
aproximação dos dois. De fato, isso nunca aconteceu, mas a pura vontade de estarem juntos, de construírem
uma vida a dois ao passar do tempo e ao superar das dificuldades iniciais
superava todo o tipo de trama que arriscava a se colocar entre os dois. A
forma tão distinta que possuíam de encarar a vida jamais obedecera às leis da
atração e tampouco os repelia. Por vezes, chegava a ser engraçado o modo como se desentendiam e voltavam a se entender.
Precisavam recorrer às mais rebuscadas formas de expressarem seus
sentimentos e intenções, quando a compreensão necessária não exigia nada fora
do comum. Os amigos – tanto de Caio como de Fernanda – nunca os entendiam perfeitamente, e os consideravam um casal a parte, do que, obviamente, ambos
discordavam.
Já
passava de meia noite quando resolveu dormir. Ao se deitar, foi dominado pelo
súbito sentimento de nostalgia. Aquela seria a sua última noite naquela cama,
naquela casa. Ao acordar, pegaria seus pertences há dias já separados e
partiria para não mais voltar. Estava pouco preparado, sentia as pernas rijas
e o coração doer só de pensar, mas precisava ser forte uma última vez. Estava
certo de que, ao acordar, os
ventos da manhã trariam como sopro a coragem necessária para resignar-se
de tudo aquilo que havia constituído. De tudo aquilo que era parte de si e da
sua história. Um pedaço dele certamente ficaria ali, naquela casa, nas pessoas
que nela um dia adentraram. Mais uma vez, e não pela última, lembrou-se de como
havia chegado até ali, até aquele momento. Lembrou-se dos amigos, da família, e, especialmente de Fernanda. Seria realmente melhor assim? Preocupou-se pouco com
a resposta. Antes de se deitar, desejou ter como companhia suas músicas
preferidas, aquelas que lhe marcavam de algum modo, por algum motivo. Selecionou
todas as que conseguiu se lembrar sem fazer muito esforço para ouvir enquanto
embalava no sono. Tinha certeza de que sentiria falta delas. Incontáveis vezes
adormeceu ao som de suas músicas, e soavam como um remédio para os ouvidos e
para a alma. Este era mais um dos
hábitos do qual se despediria esta noite.
Muitas
lembranças ainda o atormentaram e algumas vezes as músicas se repetiram antes
de pegar no sono. Quando acordou, elas ainda tocavam, e as lembranças não teriam o
abandonado totalmente. Teve sonhos ininteligíveis, mas nada incomum. Ao dar os
primeiros passos, ainda tropeçava em sua decisão. Definitivamente era a escolha
mais difícil que havia tomado e só não a abandonava porque arquitetá-la foi um
trabalho de meses. Ou talvez porque de fato os ventos matinais realmente haviam
lhe trazido a coragem necessária para seguir adiante. Caio tomou seu café, se
trocou, e, antes de partir, corrigiu a pequena bagunça que tinha feito.
Muniu-se de toda a sua convicção, deu longa olhada para a casa. Reparou em cada
detalhe na sala que antecedia a fachada. Respirou profunda e demoradamente,
virou-se e saiu aos passos. Os mais pesados de sua vida. Deixou a casa limpa,
brilhante, organizada e perfumada. Jamais voltaria a pisar ali.
Revisão: Sasha Garcia
Revisão: Sasha Garcia
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