domingo, 9 de novembro de 2014

EU NÃO SOU O ROCKY BALBOA (E ESSE NÃO É UM CAPÍTULO DO LIVRO)

É fim de tarde de uma sexta-feira nem tão quente assim. Já tivemos piores. Estou prestes a adentrar um shopping center enquanto o tímido sol sobre a montanha se prepara para sair de cena. Neste momento a maioria das pessoas já sentem os ânimos pululando e suas preocupações giram em torno de decidir qual será o lugar e a companhia da noite. Eu, não. Na verdade eu nem deveria estar aqui, não por ter aversão a esse tipo de lugar como ousava afirmar quando era mais novo. A idade, ainda que não muito tardia, traz consigo alguma indiferença.
Ao sair do trabalho, fui desviado da rota de todos os dias por qualquer motivo mundano que a menção não vale a pena. Tomei outro caminho, contemplei outras paisagens urbanas e desemboquei aqui, neste grande templo de compras e vendas, de prazeres e sacrifícios. Sinto-me animado, pois não me lembro qual foi a ultima vez que fizera um programa como este, andando por ai descompromissadamente, acompanhado apenas dos meus pensamentos. De alguma forma, me sinto... Livre. E leve. Entro sem saber exatamente o que faria ali. A única certeza é de que acabaria na praça de alimentação. Contudo, observo as vitrines com alguma atenção e visito duas ou três lojas, na esperança de que alguma coisa chamaria a minha atenção e conquistaria o meu limitado capital. Poderia, então, sentir-me parte daquele grupo, daquelas pessoas.
Tudo em vão.
Invariavelmente sigo para a praça de alimentação, e, sem muita dificuldade, escolho o lugar para saciar minha fome: Burger King. Aguardo a fila com paciência sem me atentar muito às pessoas ao meu redor até que, enquanto espero pelo meu pedido, vejo duas jovens garotas – ou nem tão jovens assim – pedindo outro copo descartável para o atendente. Pedido negado. Só então me dou conta de que o refrigerante é liberado. Open bar. Como foram espertas! Compraram apenas um combo e pagaram mais barato no outro sanduiche. Já que era refil de refrigerante, beberiam juntas pelo preço de um só. Pelo menos conseguiram um canudinho adicional e a estratégia funcionaria.
Senti-me tacanho diante de tamanha perspicácia daquelas garotas. Porque eu nunca havia pensado nisso? Provavelmente minha mente caótica esteve ocupada com outros detalhes de menor importância prática, enquanto eu deixava escapar aquela oportunidade de levar vantagem. De enganar toda uma franquia. Eu poderia ter trapaceado o Rei dos Hambúrgueres, mas não estive atento. Pergunto-me qual foi a ultima vez que me senti esperto, que havia levado alguma vantagem apenas por ser inventivo. Foi difícil me lembrar.
Calmamente chego à minha mesa de dois lugares para finalmente comer. Observo as garotas compartilhando o mesmo copo de refrigerante, porém com dois canudinhos diferentes. Sinto certa alegria e satisfação ao assistir aquela cena. Enquanto desfruto do sabor do sanduiche e das batatas, observo mais atentamente o lugar. Quase todos estão acompanhados dos pares. Dos seus pares. Apegados a essa mania de contabilizar o outro como posse ou qualquer coisa do tipo. Divago – como de costume – sobre este sintoma. O que leva as pessoas a chamarem seus companheiros de meu namorado ou minha esposa? O que de fato as leva a acreditar que são suas, quando na verdade por um simples capricho elas podem desistir da relação e deixar o outro a ver navios?
No fundo, não me encontro em condições de criticar as pessoas, quando eu não faço muito diferente. Naquele momento, sou invadido pela lembrança da minha garota, aquela que há anos me acompanha, todos os dias, sem cessar. Pelo menos em pensamento. Suponho onde ela estaria agora e o que estaria fazendo, sem grandes dificuldades. Há longos anos conheço a sua rotina, mais do que gostaria.
Percebo – enganosamente ou não – que não é raro sujeitarmos nossa felicidade, ou pelo menos a nossa satisfação e segurança à outra pessoa. Desde que sejamos um do outro, está tudo bem. Noutros tempos, afirmaria com convicção que sou autossuficiente e estou imune a este perigo. No entanto, a vida vem me mostrando, com um sucessivos socos bem no centro da face, que as coisas não são bem assim. Hoje seguindo só adiante em uma estrada meio soturna, não sustento tamanha certeza. Alguns nocautes no ringue da vida me fizeram perder perder um pouco da coragem de outrora, aquela doce coragem jovial. Não mais sou tão destemido assim. Eu não sou o Rocky Balboa¹.
Decidi me render.
Volto a assistir às duas garotas vencedoras. Desejei uma companhia. Desejei poder mostrar ao meu par que sou esperto, provar que posso vencer o Rei daquela província ou franquia. Novamente a minha garota me vem à mente, acompanhado da vontade de ter sua companhia, pelo menos até terminar de comer. Novamente, em vão. Ela se foi. Por algum capricho, ou não, eu não poderia continuar chamando-a de "minha". Porque eu insistia em chama-la dessa forma? Talvez porque eu ainda sinto que seja. Contudo, ela se foi, decidiu partir há alguns anos e eu insisto em agir dessa forma. Minha. No fim das contas, deliberadamente me rendi - e tenho sido vencido - pelo hábito. Afinal, eu não sou o Rocky Balboa.
Mas não há grande desagrado em estar só. Na verdade, estou mais leve assim. Dou-me conta que ali, naquela praça de alimentação, quase de frente um para o outro, existem dois concorrentes do Rei dos Hambúrgueres. Suas placas, cartazes e cardápios são adornados por uma profusão de cores e luzes, sem contar as fotos de pessoas felizes e sorridentes capazes de nos fazer acreditar que estamos engolindo tal felicidade.
Volto a apreciar o gosto daquela guloseima bem na minha frente. Realmente, parece mágica, uma mágica proferida por aqueles garotos de boné atrás do balcão que provavelmente não tiveram muita escolha senão trabalhar para contribuir com a decadência da nossa saúde. Tento desligar meus outros sentidos e me atentar apenas ao paladar. A sensação é quase divina. Posso sentir o gosto da carne, do bacon, do molho, da gordura. Tudo parece ser cuidadosamente estudado e calculado, para que a soma das partes seja maior que o todo.
Naquele momento, estou convencido de ter comprado toda a felicidade daquelas propagandas. O preço? Não é apenas o dinheiro gasto ali, que por si só não é tão pouco assim. Pago também com parte do meu vigor. Ele não me faz tanta falta agora, contudo, poderá fazer em algum momento. Parece um contrato: a cada mordida, uma parte da minha vida – mesmo que ínfima – fica por ali. Parece valer a pena.
Inesperadamente, o alarme de alguma daquelas franquias começa a tocar. Um som alto, agudo e repetitivo. Totalmente irritante. Certamente alguém está tomando esporro do seu superior naquele momento. – sempre tem alguém pior que a gente – penso, sem hesitar. Me sinto um pouco melhor, aquela perturbação não é grande coisa assim, afinal, é sexta-feira. Amanhã sequer preciso acordar cedo, não há motivos para estresse. Entretanto, as pessoas ao meu redor parecem se incomodar cada vez mais, algumas até se levantam e vão embora. Não consigo deixar de questionar se o alarme as fizera partir ou se o tempo delas naquele lugar simplesmente havia terminado.
Terminado o lanche, preparo-me para ir embora. Levo minha bandeja e meu lixo até a lixeira. Preciso cumprir meu papel de cidadão polido e consciente. Na estante de bandejas, identifico diversas cores, provavelmente pertencentes a estabelecimentos diferentes. Todas estão misturadas: um caos. Coloco a minha em cima de uma bandeja de outra cor, conscientemente visando alimentar o caos. Provavelmente existe uma pessoa na praça de alimentação designada para separar e enviar cada bandeja ao seu fiel destino. E é assim que as coisas acontecem. Quando tudo vai mal, aparece alguém para consertar as coisas, trazer ordem e exterminar o caos. Até que outras pessoas apareçam no dia seguinte, trazendo consigo toda a sua bagunça.
Direciono meus passos sem um destino muito especifico. Não me parecia tão difícil chegar até a saída. Basta caminhar e em algum momento a saída se fará notar. Alguns metros à frente, reconheço uma bela garota. Enamorada de um... tive dificuldades para rotular. Não era um grande amigo, tampouco um simples conhecido. Às vezes os rótulos são insuficientes e mais atrapalham do que ajudam, mas não me demorei na tarefa de encaixá-lo em algum termo.
Minha atenção foi desviada para a pessoa ao lado dela. Um desconhecido. Um rapaz de boa afeição e porte quase atlético. Faço com que ela não me veja enquanto ganho alguns segundos para observar melhor a cena. Sorrisos fáceis, mão com mão e até carícias. Elementos quase suficientes para encaixá-la no adultério, pelo menos na minha mente.
Finjo que não vejo. Finjo que não julgo. Continuo meus passos em direção à saída. O companheiro daquela garota? Jamais ficaria sabendo do acontecido. Não através de mim. Saio do Shopping e me deparo com a escuridão da noite tentando ser combatida pela iluminação urbana. Não havia me dado conta de que passara tanto tempo. O tempo correu rápido, uma surpresa agradável e um bom sinal. Ignoro as luzes da cidade e fito o mar negro que se instalara sobre minha cabeça. Sempre tive a sensação de a noite me oferecer acolhimento, pelo menos um descanso para os meus olhos e para a minha mente. Enquanto caminho em direção ao ponto de ônibus, consigo, com algum esforço, contar algumas estrelas. Elas pareciam tímidas, portanto não era uma noite muito clara.
Já no ônibus e a caminho de casa, percebo o quão exausto estou. Foi um dia cheio, e, apesar de agradável, o passeio urbano me fez repensar uma série de coisas. Dizem que a adolescência é a fase das incertezas, mas lembro de ter sido muito mais firme e convicto naquela época. A estrada até os vinte e tantos anos me trouxe uma série de dúvidas, as quais não faço menção de me livrar. Volto a contemplar o céu, escuro e vazio enquanto o transporte coletivo encurta o caminho até minha casa.
Sinto-me não perdido, mas à deriva, naquela vasta escuridão, com poucas estrelas disponíveis para me guiar. Houve um tempo, contudo, que a escuridão era completa e não havia estrela alguma. A presença desses pequenos e esparsos pontos de luz me fazia otimista. Eu não poderia perder a vontade de navegar enquanto eles estivessem por ali, oferecendo resquícios de prazer, satisfação e alegria. Como uma mudança de rota inesperada, como as paisagens urbanas, como a perspicácia de duas garotas, como um bom sanduiche e batatas fritas, como os casais em uma praça de alimentação, como um alarme ensurdecedor, como o possível adultério de uma pessoa conhecida, como uma surpresa agradável ao cair da noite.
Prestes a chegar em casa, ainda em atividade mental intensa, ao fazer uma breve retrospectiva dei-me conta de quantas coisas já abri mão. De quantas vezes havia me rendido. Eu não sou o Rocky Balboa, entretanto nem tudo é derrota. É a ordem natural das coisas. Uma ultima olhadela para o alto antes de entrar me fez perceber quanto espaço há no céu para novas estrelas. Eu não sou o Rocky Balboa, estou mais para Rustin Cohle². Houve o tempo em que só havia escuridão. E se você quer saber da minha opinião, a luz está ganhando.
¹ Se você precisa de nota de rodapé para saber quem é Rocky Balboa, você é burro!
² Rustin Cohle é um personagem do seriado True Detective dono de uma convicção capaz de te impressionar.

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