sábado, 5 de outubro de 2013

CAPÍTULO V - UMA OUTRA PRIMEIRA VEZ

O meio do ano se aproximava. Havia passado apenas alguns meses desde que tivera sua ultima conversa com Ernesto, mas naquele momento Caio se sentia alguns anos mais maduro, como se o tempo corresse mais rápido para ele. Às vezes se assustava com a reinvenção que fazia de seus conceitos em tão pouco tempo, e imaginava como estaria ao deixar a adultez jovem e batesse na porta dos quarenta anos de idade. Quando tentava projetar-se no futuro, não conseguia se desvencilhar da referência de seus pais, e também das pessoas que lhe provocavam inspiração mais íntima. Algumas nem mesmo existiam senão em algum filme ou livro, e, de alguma forma, sentia que parte dessas pessoas amadureceria junto com ele. Apesar de reconhecer em si diversas características que acreditava ter herdado de seus pais, especialmente as características paternas, não conseguia avistar um futuro tão similar. Incontáveis foram os momentos em que se percebeu rastreando os defeitos que eles possuíam e erros que haviam cometido, sempre procurando avidamente pela origem e pelos eventos desencadeadores daquilo que julgava ter sido más escolhas de seus pais. Esforçava-se para não tomá-los para si, preferindo cometer seus próprios erros, certo de que eles aconteceriam, em vez de repetir os deles. Apesar disso tinha orgulho das qualidades que havia herdado, mas acreditava que seus passos o guiariam para um lugar bem diferente.
Anoitecia, e quando se preparava para deixar o trabalho, encontrou-se com Ernesto* em um dos corredores. Cumprimentaram-se e trocaram rápidas palavras. Nos últimos três meses, se encontraram apenas algumas vezes. Ernesto, sempre com um sorriso de satisfação no rosto, mantinha relações amistosas, entretanto não mencionou nada sobre a possível oferta de emprego. Caio não se importava, e até chegou a pensar que poderia ser um teste, e, se realmente fosse, passaria por ele sem problema algum. Não nutria muito interesse por situações em que era avaliado, pois precisaria agir de acordo com regras que não eram as dele, sendo obrigado a atuar quando o papel de ator – fosse protagonista ou coadjuvante - não era o que mais lhe apetecia. Preferia estar por detrás das cortinas, observando e fazendo as coisas acontecerem do que se expor à opinião e ao julgamento alheios, que obviamente não lhe eram muito caros.
Ao chegar à universidade foi lembrado pelos colegas sobre a confraternização tradicional que faziam antes das férias chegarem. Caio havia participado de algumas dessas reuniões, onde pôde se divertir bastante, mas naquele dia não se sentia muito disposto. Preferia estar com os amigos mais próximos ou desfrutar da harmonia do seu lar, onde possuía toda a autonomia do mundo para descansar. Com um pouco de insistência, convenceram-no a participar, afinal, não parecia tão má ideia tomar algumas cervejas com pessoas ainda tão jovens e alegres. Aos seus olhos, muito mais jovens do que ele, apesar do disparate.
Após algumas rodadas, contrariando suas expectativas, o lugar e as pessoas já não tinham a mesma graça quanto da ultima vez que se reuniram. Caio reparava na conversa dos subgrupos que se formavam, e mesmo se esforçando para participar e se interessar, simplesmente não conseguia. Sentia-se em outro momento da vida, e os assuntos acabavam o deixando entediado. Nem mesmo os olhares de uma ou duas garotas que haviam o percebido era suficiente para convencê-lo de permanecer ali por muito tempo. Sentia-se preso ali, àquela realidade quando ansiava estar alguns passos a frente na sua estrada particular. Naquele momento, sentia que sua vida assemelhava-se a um pesado navio, navegando em águas severas.  Toda a tripulação trabalhava sob o chicote dos seus chefes para aumentar a velocidade enquanto uma pesada âncora invisível frustrava o trabalho de todos. Ah, se eu pudesse ter com ela! – protestou inutilmente contra a âncora invisível do navio inexistente. 
O local estava cheio, havia fumaça de cigarro em abundância e as pessoas esbarravam nele a todo o momento. Sem muito custo foi vencido pelo desprazer da circunstância, e na tentativa de salvar a noite ligou para Gordo. Se seu amigo estivesse pelas redondezas eles poderiam se encontrar, e seria uma satisfação poder passar algum tempo com ele. Acertou em sua suposição e, minutos após atender a ligação, Gordo chegou até o bar onde Caio estava. Pediu uma cerveja e então avaliaram as possibilidades da noite.
Gordo, mostrando-se mais útil que um guia turístico de ofício, apresentou diversas opções de programas e lugares dos quais Caio não poderia ter concebido sequer metade. Por fim, decidiram ir a uma casa noturna para adultos, o que para Caio representava uma novidade, pois nunca antes havia frequentado casas de strip-tease e tudo mais que poderia acontecer lá dentro. A sensação de ser a primeira vez lhe trouxe o frio na barriga que devolveu o status que a sexta-feira merecia.
Antes de entrar no carro, Caio olhou demoradamente para Gordo, como se subitamente constatasse a falta de alguma coisa, e perguntou: - A mesa estava cheia de garotas bonitas, inclusive aquela que você havia comentado... – e foi atravessado antes que pudesse terminar a frase.  - Tem uma mulher... A conheci em uma festa da empresa. Eu só consigo pensar nela, você sabe como é – explicou-se Gordo. Caio teria respondido que não, não sabia como era, mas preferiu concordar, solidarizando-se com a situação do amigo. Pelo seu tom de voz, percebeu que ainda não estavam juntos, mas que o amigo provavelmente não conseguia fazer outra coisa senão elaborar estratégias para conseguir o que desejava. E você ainda não me disse nada, como pôde? – Praguejou Caio. - Foi tudo muito rápido, eu te conto tudo quando chegarmos. Era incomum ver o amigo tão calmo na presença de tantas garotas bonitas, sem se aproximar de nenhuma delas. Gordo parecia realmente interessado nessa nova garota, e Caio percebeu que em algum momento do futuro essa seria uma daquelas mulheres que conquistaria algum lugar além das boas lembranças de seu amigo.
Gordo havia escolhido um local libertino para se abrir e falar sobre sua mais recente paixão, o que deixava Caio razoavelmente perturbado. Não sabia exatamente o porquê, mas falar sobre coisas que lhe pareciam nobres em um lugar rodeado de strippers parecia um tanto inadequado. Ao constatar que isso não representava problema algum para Gordo, sentiu-se apequenado e apressado em seu julgamento. No fim das contas, sabia que não era melhor que as pessoas que encontraria lá dentro, fossem clientes, dançarinas, seguranças ou barmen. Silenciosamente agradeceu ao amigo pela lição do dia e ligou para André, convidando-o para se juntar a eles. - Ótima ideia, faz tempo que não vejo esse dinossauro! – aprovou Gordo, como se realmente fizesse muito mais de um mês que eles haviam se encontrado. Eram vizinhos desde sempre e cresceram juntos, e foi através de Gordo que Caio pôde conhecer André. Desde alguns anos atrás foram raras as vezes em que os três não saíam juntos, mas ultimamente não conseguiam sincronizar o horário de lazer e nem mesmo a preferência pelos programas. Mas dessa vez Caio acertou em cheio, pois André aceitou o convite sem resistência alguma. Mais um acontecimento atípico acabara de acontecer naquela noite.
Logo que entrou na casa, Caio procurou reconhecer tudo que fosse incomum, qualquer coisa não fizesse parte de uma casa de diversão habitual. Analisou minuciosamente tudo que pôde, desde a disposição e estilo das mesas e cadeiras, a distância entre o bar e o palco, a localização dos seguranças, o comportamento dos funcionários, as luminárias e a intensidade da luz, volume do som. Conjecturou tudo que poderia acontecer naquele lugar. Era um hábito, quase um vício tentar identificar quais acontecimentos eram possíveis e prováveis e quais não aconteceriam. Fazia isso sempre que alguma situação representasse novidade para ele, e, na tentativa de justificar-se para si próprio, considerava um mecanismo de sobrevivência, afinal, poderia antecipar as possibilidades, sentindo-se mais preparado e seguro para enfrentar alguma eventualidade. Além disso, através de tais observações, poderia reconhecer os padrões do local e rapidamente se adequar. Não que isso fosse realmente necessário, mas para ele era a forma mais fácil de sentir a vontade em lugares novos.
Mergulhado em suas observações, teve uma leve surpresa ao voltar à superfície e ver uma das dançarinas praticamente nua, trajando apenas uma calcinha do tipo fio-dental. Entretanto, as únicas coisas que considerou realmente incomum foram a presença das mulheres seminuas e da predominância de bebidas mais finas, como uísque, na mesa dos clientes. – Boa pedida! Nada de cervejas demais e ebriedade de menos. Hoje é um bom dia para tomar algo mais forte – pensou Caio, e dentro de poucos minutos estava na companhia de sua primeira dose.
Como de costume, Caio deu partida na conversa assim que se acomodaram na cadeira. Por sugestão sua, escolheram uma das mesas que ficava entre o palco e o bar, sendo caminho quase obrigatório para os garçons, e, dessa forma, estariam mais bem assessorados. Caio não poupou o amigo de suas impressões iniciais do local. Não lhe era mais tão comum ter o prazer de fazer alguma coisa pela primeira vez, e sentia-se excitado por isso, especialmente por ser uma casa de strip-tease.
Logo a conversa aprofundou-se, adquirindo maior caráter filosófico do que o desejado. Caio parecia palestrar diante de uma multidão de um amigo só. Sentia-se diferente naquela noite. A sensação de se sentir mais velho de espírito do que seus colegas da faculdade, a aflição de julgar-se estagnado profissionalmente e a ansiedade – por mais que resistisse a assumir – em dar seguimento à proposta feita por Ernesto o consumia. Tudo o que queria naquela etapa da vida era ter menos preocupações e mais conforto, especialmente se pudesse oferecê-lo aos seus pais. Não tinha muito contato com seu pai, e nas poucas vezes que o visitava, tinha a sensação de que ele se fazia forte e bem, mas que vivia uma vida muito mais pesarosa do que procurava mostrar. Deixou-se falar até se esvaziar, mas nada teve como resposta de Gordo, que desde então se emudecera. Caio não frustrou-se, porém, afinal no fundo não esperava que fosse diferente, pois os préstimos do amigo apontavam para outros assuntos, mais banais, na avaliação de muitos, mas não na de Caio.
Rendeu-se ao trivial, e no cessar da conversa banal, Gordo vagarosamente começava a se abrir, ainda olhando fixamente para a dançarina, mas sem muito interesse, como quem encontrara a desculpa perfeita para evadir-se do olho-a-olho.
- A garota da qual eu falava mais cedo...
- Sim, a garota. – Caio deixou que o amigo continuasse.
- Ela não é daqui. Eu a conheci em uma festa de integração da empresa. Os funcionários das filiais foram convidados, muitos vieram. Inclusive ela.
- Não era essa a festa que você havia convidado aquela menina, como ela se chama mesmo? Regina.
- Renata. Sim, eu a havia convidado. Ela colocou tantas dificuldades em ir à festa e por fim não foi. Depois disso não nos encontramos mais, não daria em nada mesmo. Está resolvido. – Disse Gordo, sem remorso.
- É. Eu não tinha ido muito com a cara dela mesmo. Cheia de não me toques, não tem nada a ver com você! Mas agora me conte. O que fez essa nova garota pra te deixar assim?
- Assim como? Está tão evidente? Pois bem... Acredite, eu estava tranquilo, me divertindo sem excessos, até que resolvi ir dançar. Foi quando a vi. Ela estava sentada numa cadeira próxima da pista de dança. Estava muito quieta, achei estranho e até injusto. E, você me conhecendo bem, sabe o que sucedeu...
- Se eu errar, a próxima rodada é por minha conta: você foi até ela, perguntou por que estava tão quieta, se havia acontecido alguma coisa. Ela logo respondeu que vinha de outra cidade e não conhecia muita gente, e por isso sentia-se tímida. Você se ofereceu a pegar uma bebida para os dois, enquanto, no caminho, pensava na melhor maneira de animá-la e conquistar sua admiração. A estratégia funcionou, mas por ser um ambiente rodeado de pessoas com quem ela mantém relações profissionais, vocês não avançaram muito. Agora ela voltou pra cidade dela e deixou seus encantos contigo, e o que te consome é tentar saber o que fazer pra resolver o problema da distância. – Supôs Caio, propositalmente transbordando imponência.
- Juro que depois de todos esses anos, às vezes você ainda me assusta. Mas não foi perfeito em sua análise, pois faltou um elemento: ela tem um namorado. Sentia-se mal, eu percebi que alguma coisa nesse namoro não ia bem. Depois de algum tempo de conversas e risadas ela desabafou comigo. Recentemente descobriu que havia sido traída. O namorado ainda não sabe que ela sabe... Quando percebi que isso poderia ser uma brecha pra ela dar o troco na mesma moeda e que eu poderia tirar vantagem, acreditei que ficaríamos juntos naquela noite. E foi aí que eu percebi...
- Percebeu o que?
- Que eu já estava gostando dela. Como é possível, Caio? Em tão pouco tempo?
Caio demorou-se demasiadamente tentando responder a pergunta do amigo, e como quem se livra de uma arapuca, fez outra pergunta:
- O que te fez perceber que estava gostando dela? – Perguntou, mostrando-se interessado pela resposta.
- Nessas circunstâncias, eu tentaria fazer acontecer alguma coisa naquela noite. Mas não quis. Eu queria, sim, mas não daquele jeito, naquele momento. Então logo notei que havia mais carinho do que qualquer outra coisa. Carinho e vontade de estar a sós com ela, em outro momento, não naquele.
- E o que mais vocês fizeram no resto da noite?
- Não fiz mais nada, só companhia. Tentei desviar o assunto, porém ela voltou a desabafar. Disse-me exatamente o que suspeitei, e um pouco mais: que poderia devolver-lhe na mesma moeda e fazer com que ele soubesse através de terceiros, como havia acontecido com ela. Mas só a ideia de fazer algo desse tipo lhe causava náuseas. Assumiu que desejou se vingar dele, mas não de uma maneira tão baixa.
- E por ela ter se justificado fez com que você acreditasse que o sentimento que você começava a desenvolver por ela fosse recíproco.
- Sim! E desde então... Tudo o que eu penso é em que pé está essa situação, se ela voltará a ser solteira ou não. Eu estaria disposto a me transferir pra cidade dela, caso nós começássemos a nos ver. Que loucura é essa que se instalou em mim? – Gordo demonstrou angústia.
- ‘Um guerreiro se faz com um quarto de coragem e três quartos de loucura’*², diria um sábio montador de dragão. Espero que você consiga domar o seu!
- Dragão, Caio? Dragão? Ah vá...
Após finalizarem aquela rodada de bebida em meio às risadas sinceras, Gordo notou a sobrancelha franzida de Caio e indagou: - O que é que te acomete, amigo? Caio fez mistério. Antes de responder, chamou o garçom e pediu a gentileza de servi-los mais uma dose. Após longa espera, finalmente quebrou o silêncio: - Você não me disse o nome da sua garota, Gordo. Não me disse! – Que raios o parta, não em dois, mas em mil, homem! Achei que fosse alguma coisa importante.  Alguma dessas suas suposições malucas que você faz sobre as pessoas, sem sequer conhecê-las, e normalmente acerta. Que susto! – esbravejou Gordo. Caio, não contente com a peça que pregara no amigo, importunou-o ainda mais. – Nome, Gordo. Eu quero o nome! – Elisa, Caio. Tome seu nome. Satisfeito? Vamos beber, pelo amor de Deus!

* Ernesto agora é o novo nome do personagem anteriormente chamado de ‘Feliciano’. Quando dei o nome original ao personagem o nome do pastor Marco Feliciano ainda não era onipresente na mídia, e para evitar associações errôneas do personagem com o pastor, julguei melhor alterar o nome.

*² Brom, em Eragon.

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