O meio do ano se aproximava. Havia passado apenas alguns meses desde que tivera
sua ultima conversa com Ernesto, mas naquele momento Caio se sentia alguns anos
mais maduro, como se o tempo corresse mais rápido para ele. Às vezes se
assustava com a reinvenção que fazia de seus conceitos em tão pouco tempo, e
imaginava como estaria ao deixar a adultez jovem e batesse na porta dos
quarenta anos de idade. Quando tentava projetar-se no futuro, não conseguia se
desvencilhar da referência de seus pais, e também das pessoas que lhe
provocavam inspiração mais íntima. Algumas nem mesmo existiam senão em algum
filme ou livro, e, de alguma forma, sentia que parte dessas pessoas
amadureceria junto com ele. Apesar de reconhecer em si diversas características
que acreditava ter herdado de seus pais, especialmente as características
paternas, não conseguia avistar um futuro tão similar. Incontáveis foram os
momentos em que se percebeu rastreando os defeitos que eles possuíam e erros
que haviam cometido, sempre procurando avidamente pela origem e pelos eventos
desencadeadores daquilo que julgava ter sido más escolhas de seus pais.
Esforçava-se para não tomá-los para si, preferindo cometer seus próprios erros,
certo de que eles aconteceriam, em vez de repetir os deles. Apesar disso tinha
orgulho das qualidades que havia herdado, mas acreditava que seus passos o
guiariam para um lugar bem diferente.
Anoitecia, e quando se preparava para
deixar o trabalho, encontrou-se com Ernesto* em um dos corredores.
Cumprimentaram-se e trocaram rápidas palavras. Nos últimos três meses, se
encontraram apenas algumas vezes. Ernesto, sempre com um sorriso de satisfação
no rosto, mantinha relações amistosas, entretanto não mencionou nada sobre a
possível oferta de emprego. Caio não se importava, e até chegou a pensar que
poderia ser um teste, e, se realmente fosse, passaria por ele sem problema
algum. Não nutria muito interesse por situações em que era avaliado, pois
precisaria agir de acordo com regras que não eram as dele, sendo obrigado a
atuar quando o papel de ator – fosse protagonista ou coadjuvante - não era o
que mais lhe apetecia. Preferia estar por detrás das cortinas, observando e
fazendo as coisas acontecerem do que se expor à opinião e ao julgamento alheios,
que obviamente não lhe eram muito caros.
Ao chegar à universidade foi lembrado
pelos colegas sobre a confraternização tradicional que faziam antes das férias
chegarem. Caio havia participado de algumas dessas reuniões, onde pôde se
divertir bastante, mas naquele dia não se sentia muito disposto. Preferia estar
com os amigos mais próximos ou desfrutar da harmonia do seu lar, onde possuía
toda a autonomia do mundo para descansar. Com um pouco de insistência,
convenceram-no a participar, afinal, não parecia tão má ideia tomar algumas
cervejas com pessoas ainda tão jovens e alegres. Aos seus olhos, muito mais
jovens do que ele, apesar do disparate.
Após algumas rodadas, contrariando suas
expectativas, o lugar e as pessoas já não tinham a mesma graça quanto da ultima
vez que se reuniram. Caio reparava na conversa dos subgrupos que se formavam, e
mesmo se esforçando para participar e se interessar, simplesmente não
conseguia. Sentia-se em outro momento da vida, e os assuntos acabavam o
deixando entediado. Nem mesmo os olhares de uma ou duas garotas que haviam o
percebido era suficiente para convencê-lo de permanecer ali por muito tempo.
Sentia-se preso ali, àquela realidade quando ansiava estar alguns passos a
frente na sua estrada particular. Naquele momento, sentia que sua vida
assemelhava-se a um pesado navio, navegando em águas severas. Toda a tripulação trabalhava sob o chicote
dos seus chefes para aumentar a velocidade enquanto uma pesada âncora invisível
frustrava o trabalho de todos. Ah, se eu pudesse ter com ela! – protestou
inutilmente contra a âncora invisível do navio inexistente.
O local estava cheio, havia fumaça de
cigarro em abundância e as pessoas esbarravam nele a todo o momento. Sem muito
custo foi vencido pelo desprazer da circunstância, e na tentativa de salvar a
noite ligou para Gordo. Se seu amigo estivesse pelas redondezas eles poderiam
se encontrar, e seria uma satisfação poder passar algum tempo com ele. Acertou
em sua suposição e, minutos após atender a ligação, Gordo chegou até o bar onde
Caio estava. Pediu uma cerveja e então avaliaram as possibilidades da noite.
Gordo, mostrando-se mais útil que um
guia turístico de ofício, apresentou diversas opções de programas e lugares dos
quais Caio não poderia ter concebido sequer metade. Por fim, decidiram ir a uma
casa noturna para adultos, o que para Caio representava uma novidade, pois
nunca antes havia frequentado casas de strip-tease e tudo mais que poderia
acontecer lá dentro. A sensação de ser a primeira vez lhe trouxe o frio na barriga
que devolveu o status que a sexta-feira merecia.
Antes de entrar no carro, Caio olhou
demoradamente para Gordo, como se subitamente constatasse a falta de alguma
coisa, e perguntou: - A mesa estava cheia de garotas bonitas, inclusive aquela
que você havia comentado... – e foi atravessado antes que pudesse terminar a
frase. - Tem uma mulher... A conheci em
uma festa da empresa. Eu só consigo pensar nela, você sabe como é – explicou-se
Gordo. Caio teria respondido que não, não sabia como era, mas preferiu
concordar, solidarizando-se com a situação do amigo. Pelo seu tom de voz,
percebeu que ainda não estavam juntos, mas que o amigo provavelmente não
conseguia fazer outra coisa senão elaborar estratégias para conseguir o que
desejava. E você ainda não me disse nada, como pôde? – Praguejou Caio. - Foi
tudo muito rápido, eu te conto tudo quando chegarmos. Era incomum ver o amigo
tão calmo na presença de tantas garotas bonitas, sem se aproximar de nenhuma
delas. Gordo parecia realmente interessado nessa nova garota, e Caio percebeu
que em algum momento do futuro essa seria uma daquelas mulheres que
conquistaria algum lugar além das boas lembranças de seu amigo.
Gordo havia escolhido um local
libertino para se abrir e falar sobre sua mais recente paixão, o que deixava
Caio razoavelmente perturbado. Não sabia exatamente o porquê, mas falar sobre
coisas que lhe pareciam nobres em um lugar rodeado de strippers parecia um
tanto inadequado. Ao constatar que isso não representava problema algum para
Gordo, sentiu-se apequenado e apressado em seu julgamento. No fim das contas,
sabia que não era melhor que as pessoas que encontraria lá dentro, fossem
clientes, dançarinas, seguranças ou barmen. Silenciosamente agradeceu ao amigo
pela lição do dia e ligou para André, convidando-o para se juntar a eles. -
Ótima ideia, faz tempo que não vejo esse dinossauro! – aprovou Gordo, como se
realmente fizesse muito mais de um mês que eles haviam se encontrado. Eram
vizinhos desde sempre e cresceram juntos, e foi através de Gordo que Caio pôde
conhecer André. Desde alguns anos atrás foram raras as vezes em que os três não
saíam juntos, mas ultimamente não conseguiam sincronizar o horário de lazer e
nem mesmo a preferência pelos programas. Mas dessa vez Caio acertou em cheio,
pois André aceitou o convite sem resistência alguma. Mais um acontecimento
atípico acabara de acontecer naquela noite.
Logo que entrou na casa, Caio
procurou reconhecer tudo que fosse incomum, qualquer coisa não fizesse parte de
uma casa de diversão habitual. Analisou minuciosamente tudo que pôde, desde a
disposição e estilo das mesas e cadeiras, a distância entre o bar e o palco, a
localização dos seguranças, o comportamento dos funcionários, as luminárias e a
intensidade da luz, volume do som. Conjecturou tudo que poderia acontecer
naquele lugar. Era um hábito, quase um vício tentar identificar quais
acontecimentos eram possíveis e prováveis e quais não aconteceriam. Fazia isso
sempre que alguma situação representasse novidade para ele, e, na tentativa de
justificar-se para si próprio, considerava um mecanismo de sobrevivência,
afinal, poderia antecipar as possibilidades, sentindo-se mais preparado e
seguro para enfrentar alguma eventualidade. Além disso, através de tais
observações, poderia reconhecer os padrões do local e rapidamente se adequar.
Não que isso fosse realmente necessário, mas para ele era a forma mais fácil de
sentir a vontade em lugares novos.
Mergulhado em suas observações, teve
uma leve surpresa ao voltar à superfície e ver uma das dançarinas praticamente
nua, trajando apenas uma calcinha do tipo fio-dental. Entretanto, as únicas
coisas que considerou realmente incomum foram a presença das mulheres seminuas
e da predominância de bebidas mais finas, como uísque, na mesa dos clientes. –
Boa pedida! Nada de cervejas demais e ebriedade de menos. Hoje é um bom dia
para tomar algo mais forte – pensou Caio, e dentro de poucos minutos estava na
companhia de sua primeira dose.
Como de costume, Caio deu partida na
conversa assim que se acomodaram na cadeira. Por sugestão sua, escolheram uma
das mesas que ficava entre o palco e o bar, sendo caminho quase obrigatório
para os garçons, e, dessa forma, estariam mais bem assessorados. Caio não
poupou o amigo de suas impressões iniciais do local. Não lhe era mais tão comum
ter o prazer de fazer alguma coisa pela primeira vez, e sentia-se excitado por
isso, especialmente por ser uma casa de strip-tease.
Logo a conversa aprofundou-se, adquirindo
maior caráter filosófico do que o desejado. Caio parecia palestrar diante de
uma multidão de um amigo só. Sentia-se diferente naquela noite. A sensação de
se sentir mais velho de espírito do que seus colegas da faculdade, a aflição de
julgar-se estagnado profissionalmente e a ansiedade – por mais que resistisse a
assumir – em dar seguimento à proposta feita por Ernesto o consumia. Tudo o que
queria naquela etapa da vida era ter menos preocupações e mais conforto,
especialmente se pudesse oferecê-lo aos seus pais. Não tinha muito contato com
seu pai, e nas poucas vezes que o visitava, tinha a sensação de que ele se
fazia forte e bem, mas que vivia uma vida muito mais pesarosa do que procurava
mostrar. Deixou-se falar até se esvaziar, mas nada teve como resposta de Gordo,
que desde então se emudecera. Caio não frustrou-se, porém, afinal no fundo não
esperava que fosse diferente, pois os préstimos do amigo apontavam para outros
assuntos, mais banais, na avaliação de muitos, mas não na de Caio.
Rendeu-se ao trivial, e no cessar da
conversa banal, Gordo vagarosamente começava a se abrir, ainda olhando
fixamente para a dançarina, mas sem muito interesse, como quem encontrara a
desculpa perfeita para evadir-se do olho-a-olho.
- A garota da qual eu falava mais
cedo...
- Sim, a garota. – Caio deixou que o
amigo continuasse.
- Ela não é daqui. Eu a conheci em
uma festa de integração da empresa. Os funcionários das filiais foram
convidados, muitos vieram. Inclusive ela.
- Não era essa a festa que você havia
convidado aquela menina, como ela se chama mesmo? Regina.
- Renata. Sim, eu a havia convidado.
Ela colocou tantas dificuldades em ir à festa e por fim não foi. Depois disso
não nos encontramos mais, não daria em nada mesmo. Está resolvido. – Disse
Gordo, sem remorso.
- É. Eu não tinha ido muito com a
cara dela mesmo. Cheia de não me toques, não tem nada a ver com você! Mas agora
me conte. O que fez essa nova garota pra te deixar assim?
- Assim como? Está tão evidente? Pois
bem... Acredite, eu estava tranquilo, me divertindo sem excessos, até que
resolvi ir dançar. Foi quando a vi. Ela estava sentada numa cadeira próxima da
pista de dança. Estava muito quieta, achei estranho e até injusto. E, você me
conhecendo bem, sabe o que sucedeu...
- Se eu errar, a próxima rodada é por
minha conta: você foi até ela, perguntou por que estava tão quieta, se havia
acontecido alguma coisa. Ela logo respondeu que vinha de outra cidade e não
conhecia muita gente, e por isso sentia-se tímida. Você se ofereceu a pegar uma
bebida para os dois, enquanto, no caminho, pensava na melhor maneira de
animá-la e conquistar sua admiração. A estratégia funcionou, mas por ser um
ambiente rodeado de pessoas com quem ela mantém relações profissionais, vocês
não avançaram muito. Agora ela voltou pra cidade dela e deixou seus encantos
contigo, e o que te consome é tentar saber o que fazer pra resolver o problema
da distância. – Supôs Caio, propositalmente transbordando imponência.
- Juro que depois de todos esses
anos, às vezes você ainda me assusta. Mas não foi perfeito em sua análise, pois
faltou um elemento: ela tem um namorado. Sentia-se mal, eu percebi que alguma
coisa nesse namoro não ia bem. Depois de algum tempo de conversas e risadas ela
desabafou comigo. Recentemente descobriu que havia sido traída. O namorado
ainda não sabe que ela sabe... Quando percebi que isso poderia ser uma brecha
pra ela dar o troco na mesma moeda e que eu poderia tirar vantagem, acreditei
que ficaríamos juntos naquela noite. E foi aí que eu percebi...
- Percebeu o que?
- Que eu já estava gostando dela.
Como é possível, Caio? Em tão pouco tempo?
Caio
demorou-se demasiadamente tentando responder a pergunta do amigo, e como quem
se livra de uma arapuca, fez outra pergunta:
- O que te fez perceber que estava
gostando dela? – Perguntou, mostrando-se interessado pela resposta.
- Nessas circunstâncias, eu tentaria
fazer acontecer alguma coisa naquela noite. Mas não quis. Eu queria, sim, mas
não daquele jeito, naquele momento. Então logo notei que havia mais carinho do
que qualquer outra coisa. Carinho e vontade de estar a sós com ela, em outro
momento, não naquele.
- E o que mais vocês fizeram no resto
da noite?
- Não fiz mais nada, só companhia.
Tentei desviar o assunto, porém ela voltou a desabafar. Disse-me exatamente o
que suspeitei, e um pouco mais: que poderia devolver-lhe na mesma moeda e fazer
com que ele soubesse através de terceiros, como havia acontecido com ela. Mas
só a ideia de fazer algo desse tipo lhe causava náuseas. Assumiu que desejou se
vingar dele, mas não de uma maneira tão baixa.
- E por ela ter se justificado fez
com que você acreditasse que o sentimento que você começava a desenvolver por
ela fosse recíproco.
- Sim! E desde então... Tudo o que eu
penso é em que pé está essa situação, se ela voltará a ser solteira ou não. Eu
estaria disposto a me transferir pra cidade dela, caso nós começássemos a nos
ver. Que loucura é essa que se instalou em mim? – Gordo demonstrou angústia.
- ‘Um guerreiro se faz com um quarto
de coragem e três quartos de loucura’*², diria um sábio montador de dragão.
Espero que você consiga domar o seu!
- Dragão, Caio? Dragão? Ah vá...
Após finalizarem aquela rodada de
bebida em meio às risadas sinceras, Gordo notou a sobrancelha franzida de Caio
e indagou: - O que é que te acomete, amigo? Caio fez mistério. Antes de
responder, chamou o garçom e pediu a gentileza de servi-los mais uma dose. Após
longa espera, finalmente quebrou o silêncio: - Você não me disse o nome da sua
garota, Gordo. Não me disse! – Que raios o parta, não em dois, mas em mil,
homem! Achei que fosse alguma coisa importante.
Alguma dessas suas suposições malucas que você faz sobre as pessoas, sem
sequer conhecê-las, e normalmente acerta. Que susto! – esbravejou Gordo. Caio,
não contente com a peça que pregara no amigo, importunou-o ainda mais. – Nome,
Gordo. Eu quero o nome! – Elisa, Caio. Tome seu nome. Satisfeito? Vamos beber,
pelo amor de Deus!
*
Ernesto agora é o novo nome do personagem anteriormente chamado de ‘Feliciano’.
Quando dei o nome original ao personagem o nome do pastor Marco Feliciano ainda
não era onipresente na mídia, e para evitar associações errôneas do personagem
com o pastor, julguei melhor alterar o nome.
*²
Brom, em Eragon.
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