sábado, 5 de outubro de 2013

CAPÍTULO VI - FILHOS E PAIS

Inerte, Caio assistia com prazer, à dançarina. Sentia-se perdido em seus longos cabelos, pele amorenada e especialmente no movimentar de seus fartos seios que pareciam ter sido esculpidos pelas mãos abertas de um gigante. Entretanto, com toda a certeza, haviam sido esculpidos não pelas mãos de um gigante perdido, mas de um homem encontrado justamente para aquele propósito. Provavelmente um Doutor.
Prestava genuína atenção em todos os movimentos daquela garota, e, enquanto se encantava, buscava compreender tamanha graciosidade. Não era apenas uma dança, mas uma exibição de um complexo simbolismo que envolvia beleza, malícia e doçura ao mesmo tempo. A habilidade e suavidade daqueles movimentos apresentavam um caráter demasiadamente feminino, fugindo da compreensão dos pobres homens que poderiam, no máximo, saciar-se episodicamente, correndo o risco de se manterem eternamente reféns do espetáculo. Naquele momento a única conclusão que Caio poderia chegar, talvez com certa contribuição do uísque, é que a beleza masculina não pode assemelhar-se à daquelas garotas, e de inúmeras outras.
Foi acordado de seu torpor com a chegada repentina de André. Gordo, que naquele momento possuía fácil sorriso recebeu seu amigo em caloroso abraço, o que o deixou um tanto desconcertado. Indagaram o amigo – que se mostrou resistente - sobre o atraso, e Caio logo pôde perceber que haveria mais uma novidade a ser revelada. André não falava muito, não com palavras, e Caio sabia que insistir para que ele falasse não surtiria muito efeito, e que, logo que se sentisse à vontade, iria revelar, à sua maneira, aquilo que tinha a dizer.
Abusaram da trivialidade durante um bom tempo, quando Gordo não se fez discreto: - André, você vai derreter essa ruiva com esses seus olhos de Águia! Nada mais aqui te prende a atenção? - Não, cara. Porque prenderia? – retrucou. E sem qualquer esforço, se entregaram às gargalhadas. Contudo, pouco tempo depois André ficou sério, e sem fazer muito mistério, disse:
- Vou ser pai.
E nada mais falou.
Como a vida das folhas das árvores que se esvai com a chegada do outono, o sorriso dos três tornaram-se pálidos ao receber a notícia. Fez-se um silêncio duradouro. Ninguém sabia o que dizer, especialmente André. Então Caio começou pelo básico, perguntando-lhe quem era a mãe. Tratava-se de uma garota que André, como de costume, vinha se relacionando não em segredo, mas ainda assim sem o conhecimento dos amigos. Nenhuma outra pessoa além dele próprio a conhecia, e diante disso André se sentiu tolo por não incluir minimamente os amigos naquilo que acontecia em sua vida. Gordo se ocupou de todas as outras perguntas, e em pouco tempo descobriram que André era de fato o único pai possível, que a gravidez já acontecia há cerca de dois meses e que ele não fazia a menor ideia do que fazer dali pra frente. Nunca havia sequer pensado em ser pai. Para André, essa era uma realidade mais do que distante, que talvez sequer fosse acontecer e que agora o alcançara através das inconveniências da vida.
Caio estava atônito. Não havia nada a oferecer como experiência ou consolo a seu amigo, mas sentia que havia sido incumbido de tal tarefa. Avidamente começou a pensar no que faria caso estivesse no lugar de André. Quais seriam suas reações, suas prioridades, seus planos e suas decisões a partir daquele momento. Não demorou muito para perceber que se sentiria tão perdido quanto o amigo e que sua vida necessariamente passaria por grandes mudanças, mas acreditava que encontraria menos dificuldades em tornar-se pai do que André. Por que o André? Por quê? – revoltou-se Caio sem dar a menor pista da revolta em seu semblante.
- Você quer ter esse filho, André? – Perguntou Caio, perscrutando seu alvo.
- Não. Contudo, não tenho coragem de impedir que essa criança venha ao mundo. Não cabe a mim decidir isso, está fora do meu alcance.
Caio conhecia o real significado da resposta evasiva, e poderia apostar que as verdadeiras intenções de seu amigo estavam repletas de compaixão e de amor pela mãe e pela criança que estava por vir. Um amor concebido de uma maneira pouco usual, mas amor de fato. Como em várias outras circunstâncias, o admirou. André poderia ser considerado grosseiro, bruto e até mesmo frio por muitas pessoas, especialmente as que não chegaram a conhecê-lo bem, mas não se poderia negar que ele era um homem de coração quente e nobre, e Caio era um dos que sabia muito bem disso.
Durante a hora que se seguiu, discutiram tudo que precisariam fazer durante os próximos meses. Gordo e Caio pareciam disputar quem falava mais e dava mais sugestões, enquanto André apurava tudo sem se dar conta de que aquilo estava mesmo acontecendo com ele. Discutiram sobre nomes, tanto masculinos quanto femininos – e disso André participou, pois havia interesse em nomes e seus significados, por mais que não fosse muito supersticioso. Caio sugeriu que já começassem a organizar o chá de bebê, e gordo discordou, desejando que fossem realizados dois ou três chás já que teriam bastante tempo até o nascimento. E discutiram entusiasmadamente sobre a qualidade e tamanho das fraldas relativas à idade da criança sem terem o menor conhecimento da causa, e discutiram várias outras coisas das quais nada sabiam, mas que naquele momento só se importavam em negociar e planejar e fazer tudo aquilo que o amigo deixaria para ultima hora, senão para o acaso resolver. Naquele momento André se sentia confortável e animado pelos amigos de uma forma para qual não estava preparado. E naquela altura da noite a notícia já havia se tornado motivo de festa, entusiasmo e risadas, até mesmo de André.
A discussão encontrou seu ápice quando Caio e Gordo entraram num áspero embate, despertando a atenção e curiosidade das pessoas ao redor ao elevarem o tom de voz para decidir o clube de futebol pelo qual a criança seria torcedora, pois cada um torcia pra um dos times rivais da cidade, e, pra piorar a situação, não haveria desempate por parte de André que era completamente indiferente à questão e desejava veementemente que seu filho ou sua filha seguisse o mesmo caminho. Certamente nenhum deles sairia vencedor naquela noite, e nem mesmo até o fim da gestação, e continuariam disputando a torcida de criança através de presentes e blusas dos clubes, além de passeios ao estádio e qualquer outra invenção que lhes desse alguma vantagem sobre o outro. Estava declarada uma que duraria anos.
- Que noite! – Pensou Caio. Dançarinas, um amor platônico e o anúncio de um filho. Caio considerou sua vida um tanto monótona e sem graça diante das emoções vividas pelos amigos, e esses pensamentos obscurecidos, sabia ele, começavam a ganhar espaço quando a bebida já passava do efeito desejado. Era o sinal de que deveria parar por ali. Começou a despedir-se dos amigos enquanto investigava se eles tinham as mesmas intenções. Gordo também planejava partir, mas André tinha outros planos para o fim da noite, os quais Gordo quis saber, mas André nada respondeu, apenas lançou um olhar na direção dos amigos, repousando em Caio, como se procurasse algum tipo de aprovação. Caio acenou positivamente com a cabeça, e como num contrato silencioso, admitiu o amigo em sua caçada pela dançarina ruiva.
- Vamos logo, não vejo a hora de ver a minha cama! – Apressou Gordo.
- Eu vou sozinho, você vai direto pra casa, não está em condições de ficar dando voltas pela cidade.
- Sozinho uma ova! Entra logo, você vai esperar até o amanhecer pra conseguir pegar um ônibus. – Rebateu
- Não, eu já me certifiquei disso, não vai demorar nada até que ele chegue, vá logo – Mentiu Caio, com perícia.
- Que seja. Cabeça dura como sempre. E quando preparava pra entrar no carro, Gordo deu meia volta e perguntou: - Caio... hoje eu lhe falei sobre a Elisa, e, céus! O André nos contou essa incrível novidade, mas você nada disse. O que há de errado? – Nada de errado. Que mal tem nisso? – Desconversou Caio. - Não sei. Você não disse muito sobre você, sobre a Júlia. – respondeu o amigo, fazendo-se claramente desconfiado. – Não há o que dizer. – Caio pôs fim a conversa.
Caio apreciava a solidão em momentos como aquele, com a mente um pouco fora de si e com bastante conteúdo a ser explorado. Encontrava-se em estado de morbidez, acompanhado de pensamentos não muito otimistas ou encorajadores. Sentia-se à margem da importância das coisas e a mercê de toda a má sorte, preparado para continuar por esta trilha enquanto fosse necessário. – Ser pai! Que coisa. – despertou-se de seus pensamentos pouco funcionais.  Ali, no chacoalhar do transporte coletivo, pela primeira vez conseguia com algum sucesso imaginar-se pai. -Como fui tão estúpido de jamais imaginar tal condição? – Censurou a si próprio. Em outros momentos pensou e até mesmo comprou toda a ideia do típico sonho americano, de viver confortavelmente na companhia de uma esposa e um filho ou dois, quiçá três, mas nunca sentiu na pele o que significaria ser pai. Durante grande parte da sua vida se preocupou com o papel de filho, se esforçando para desempenhá-lo da melhor maneira possível, mas nele havia se mantido refém. – Poderia ter sido eu, porque não? E intimidou-se com as furtivas possibilidades da vida. Daquele momento em diante jamais deixaria de se colocar no papel de pai, e com certa frequência. Dentro de pouco tempo passaria a aprovar e gostar da ideia. Gostar bastante.

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