Inerte, Caio assistia com prazer, à
dançarina. Sentia-se perdido em seus longos cabelos, pele amorenada e
especialmente no movimentar de seus fartos seios que pareciam ter sido
esculpidos pelas mãos abertas de um gigante. Entretanto, com toda a certeza,
haviam sido esculpidos não pelas mãos de um gigante perdido, mas de um homem
encontrado justamente para aquele propósito. Provavelmente um Doutor.
Prestava genuína atenção em todos os
movimentos daquela garota, e, enquanto se encantava, buscava compreender
tamanha graciosidade. Não era apenas uma dança, mas uma exibição de um complexo
simbolismo que envolvia beleza, malícia e doçura ao mesmo tempo. A habilidade e
suavidade daqueles movimentos apresentavam um caráter demasiadamente feminino,
fugindo da compreensão dos pobres homens que poderiam, no máximo, saciar-se
episodicamente, correndo o risco de se manterem eternamente reféns do
espetáculo. Naquele momento a única conclusão que Caio poderia chegar, talvez
com certa contribuição do uísque, é que a beleza masculina não pode
assemelhar-se à daquelas garotas, e de inúmeras outras.
Foi acordado de seu torpor com a
chegada repentina de André. Gordo, que naquele momento possuía fácil sorriso
recebeu seu amigo em caloroso abraço, o que o deixou um tanto desconcertado.
Indagaram o amigo – que se mostrou resistente - sobre o atraso, e Caio logo
pôde perceber que haveria mais uma novidade a ser revelada. André não falava muito,
não com palavras, e Caio sabia que insistir para que ele falasse não surtiria
muito efeito, e que, logo que se sentisse à vontade, iria revelar, à sua
maneira, aquilo que tinha a dizer.
Abusaram da trivialidade durante um
bom tempo, quando Gordo não se fez discreto: - André, você vai derreter essa
ruiva com esses seus olhos de Águia! Nada mais aqui te prende a atenção? - Não,
cara. Porque prenderia? – retrucou. E sem qualquer esforço, se entregaram às
gargalhadas. Contudo, pouco tempo depois André ficou sério, e sem fazer muito
mistério, disse:
- Vou ser pai.
E nada mais falou.
Como a vida das folhas das
árvores que se esvai com a chegada do outono, o sorriso dos três tornaram-se pálidos ao
receber a notícia. Fez-se um silêncio duradouro. Ninguém sabia o que dizer,
especialmente André. Então Caio começou pelo básico, perguntando-lhe quem era a
mãe. Tratava-se de uma garota que André, como de costume, vinha se relacionando
não em segredo, mas ainda assim sem o conhecimento dos amigos. Nenhuma outra
pessoa além dele próprio a conhecia, e diante disso André se sentiu tolo por
não incluir minimamente os amigos naquilo que acontecia em sua vida. Gordo se
ocupou de todas as outras perguntas, e em pouco tempo descobriram que André era
de fato o único pai possível, que a gravidez já acontecia há cerca de dois
meses e que ele não fazia a menor ideia do que fazer dali pra frente. Nunca
havia sequer pensado em ser pai. Para André, essa era uma realidade mais do que
distante, que talvez sequer fosse acontecer e que agora o alcançara através das
inconveniências da vida.
Caio estava atônito. Não havia nada a
oferecer como experiência ou consolo a seu amigo, mas sentia que havia sido
incumbido de tal tarefa. Avidamente começou a pensar no que faria caso
estivesse no lugar de André. Quais seriam suas reações, suas prioridades, seus
planos e suas decisões a partir daquele momento. Não demorou muito para
perceber que se sentiria tão perdido quanto o amigo e que sua vida
necessariamente passaria por grandes mudanças, mas acreditava que encontraria
menos dificuldades em tornar-se pai do que André. Por que o André? Por quê? –
revoltou-se Caio sem dar a menor pista da revolta em seu semblante.
- Você quer ter esse filho, André? –
Perguntou Caio, perscrutando seu alvo.
- Não. Contudo, não tenho coragem de
impedir que essa criança venha ao mundo. Não cabe a mim decidir isso, está fora
do meu alcance.
Caio conhecia o real significado da
resposta evasiva, e poderia apostar que as verdadeiras intenções de seu amigo
estavam repletas de compaixão e de amor pela mãe e pela criança que estava por
vir. Um amor concebido de uma maneira pouco usual, mas amor de fato. Como em
várias outras circunstâncias, o admirou. André poderia ser considerado
grosseiro, bruto e até mesmo frio por muitas pessoas, especialmente as que não
chegaram a conhecê-lo bem, mas não se poderia negar que ele era um homem de
coração quente e nobre, e Caio era um dos que sabia muito bem disso.
Durante a hora que se seguiu,
discutiram tudo que precisariam fazer durante os próximos meses. Gordo e Caio
pareciam disputar quem falava mais e dava mais sugestões, enquanto André
apurava tudo sem se dar conta de que aquilo estava mesmo acontecendo com ele.
Discutiram sobre nomes, tanto masculinos quanto femininos – e disso André participou,
pois havia interesse em nomes e seus significados, por mais que não fosse muito
supersticioso. Caio sugeriu que já começassem a organizar o chá de bebê, e
gordo discordou, desejando que fossem realizados dois ou três chás já que
teriam bastante tempo até o nascimento. E discutiram entusiasmadamente sobre a
qualidade e tamanho das fraldas relativas à idade da criança sem terem o menor
conhecimento da causa, e discutiram várias outras coisas das quais nada sabiam,
mas que naquele momento só se importavam em negociar e planejar e fazer tudo
aquilo que o amigo deixaria para ultima hora, senão para o acaso resolver.
Naquele momento André se sentia confortável e animado pelos amigos de uma forma
para qual não estava preparado. E naquela altura da noite a notícia já havia se
tornado motivo de festa, entusiasmo e risadas, até mesmo de André.
A discussão encontrou seu ápice
quando Caio e Gordo entraram num áspero embate, despertando a atenção e
curiosidade das pessoas ao redor ao elevarem o tom de voz para decidir o clube
de futebol pelo qual a criança seria torcedora, pois cada um torcia pra um dos
times rivais da cidade, e, pra piorar a situação, não haveria desempate por
parte de André que era completamente indiferente à questão e desejava
veementemente que seu filho ou sua filha seguisse o mesmo caminho. Certamente
nenhum deles sairia vencedor naquela noite, e nem mesmo até o fim da gestação,
e continuariam disputando a torcida de criança através de presentes e blusas
dos clubes, além de passeios ao estádio e qualquer outra invenção que lhes
desse alguma vantagem sobre o outro. Estava declarada uma que duraria
anos.
- Que noite! – Pensou Caio.
Dançarinas, um amor platônico e o anúncio de um filho. Caio considerou sua vida
um tanto monótona e sem graça diante das emoções vividas pelos amigos, e esses
pensamentos obscurecidos, sabia ele, começavam a ganhar espaço quando a bebida
já passava do efeito desejado. Era o sinal de que deveria parar por ali.
Começou a despedir-se dos amigos enquanto investigava se eles tinham as mesmas
intenções. Gordo também planejava partir, mas André tinha outros planos para o
fim da noite, os quais Gordo quis saber, mas André nada respondeu, apenas
lançou um olhar na direção dos amigos, repousando em Caio, como se procurasse
algum tipo de aprovação. Caio acenou positivamente com a cabeça, e como num
contrato silencioso, admitiu o amigo em sua caçada pela dançarina ruiva.
- Vamos logo, não vejo a hora de ver
a minha cama! – Apressou Gordo.
- Eu vou sozinho, você vai direto pra
casa, não está em condições de ficar dando voltas pela cidade.
- Sozinho uma ova! Entra logo, você
vai esperar até o amanhecer pra conseguir pegar um ônibus. – Rebateu
- Não, eu já me certifiquei disso,
não vai demorar nada até que ele chegue, vá logo – Mentiu Caio, com perícia.
- Que seja. Cabeça dura como sempre.
E quando preparava pra entrar no carro, Gordo deu meia volta e perguntou: -
Caio... hoje eu lhe falei sobre a Elisa, e, céus! O André nos contou essa
incrível novidade, mas você nada disse. O que há de errado? – Nada de errado.
Que mal tem nisso? – Desconversou Caio. - Não sei. Você não disse muito sobre
você, sobre a Júlia. – respondeu o amigo, fazendo-se claramente desconfiado. –
Não há o que dizer. – Caio pôs fim a conversa.
Caio apreciava a solidão em momentos
como aquele, com a mente um pouco fora de si e com bastante conteúdo a ser
explorado. Encontrava-se em estado de morbidez, acompanhado de pensamentos não
muito otimistas ou encorajadores. Sentia-se à margem da importância das coisas
e a mercê de toda a má sorte, preparado para continuar por esta trilha enquanto
fosse necessário. – Ser pai! Que coisa. – despertou-se de seus pensamentos
pouco funcionais. Ali, no chacoalhar do
transporte coletivo, pela primeira vez conseguia com algum sucesso imaginar-se
pai. -Como fui tão estúpido de jamais imaginar tal condição? – Censurou a si
próprio. Em outros momentos pensou e até mesmo comprou toda a ideia do típico
sonho americano, de viver confortavelmente na companhia de uma esposa e um filho
ou dois, quiçá três, mas nunca sentiu na pele o que significaria ser pai.
Durante grande parte da sua vida se preocupou com o papel de filho, se
esforçando para desempenhá-lo da melhor maneira possível, mas nele havia se
mantido refém. – Poderia ter sido eu, porque não? E intimidou-se com as
furtivas possibilidades da vida. Daquele momento em diante jamais deixaria de
se colocar no papel de pai, e com certa frequência. Dentro de pouco tempo
passaria a aprovar e gostar da ideia. Gostar bastante.
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